☄ Kância

Pobre Cecille! Tamanha era sua feiura naquele momento que se pudesse chorar lhe faltariam lágrimas! Uma lástima, uma lástima! Já não bastava ter sua perna recém costurada e cega de um olho, os humanos conseguiram piorar ainda mais. Que falta tinha de seu mestre! E agora encontrava-se quase sem o braço, este se mantinha pendurado por um fio e a boneca agradecia aos Céus, pois ele ainda estava ali. Mas seu olho! Seu pobre olho, quase não podia ver, a coitada. Tinha que segurá-lo e via muito mal, quase cega, era verdade. E agora escondia-se, escondia-se com uma longa capa de capuz, pois de fato era estranha aos humanos e há aqueles que não gostam. Abençoado era aquela Aloy, fizera um bom trabalho com sua perna, mas onde estaria ele? Estava perdida, pois quase não podia ver. Apenas vultos a sua frente, e mais vultos e um perigosamente perto. A boneca distraída com sua própria desgraça não o vira e trombara com o homem, acabando por cair no chão e revelando sua pele de pano. -:-:- Rasgue-me, óh Céu e me livre desta tormenta! Por favor, senhor, não posso imaginar-me mais feia! Deixe-me intacta, não aguento mais tal vida sem mestre. Pobre mestre! Pobre Cecille! -:-:- E choramingava a boneca que tornou a esconder sua pele cheia de remendos. Uma verdadeira desgraça uma boneca que não sabe costurar. Uma boneca sem mestre para lhe ajudar.

A sua frente um individuo encapuzado esbarrara em u homem, mas este não mostrou nenhuma intenção de ajudar o outro que havia caído no chão. Richard olhou melhor e pôde ver que se tratava de uma mulher, mas o que havia de errado com ela? Não, o que estava errado era óbvio, mas o que tinha acontecido com ela?

Caminhou mais rápido até a mulher e ofereceu-lhe ajuda. Quanto mais se aproximava mais achava estranho, ela não parecia real. Tentou não olhar muito para as suas "deficiências".

- Precisa de alguma ajuda.

Sua voz tinha um tom bem vivo, presente.

A boneca ergueu o olhar e tentou visualizar o outro homem da melhor maneira que podia, mas se deu conta de algo. Soltou o olho que ficara pendurado em seu rosto por um fio e buscou pelo seu outro braço. -:-:- Bra... Braço -:-:- Pobre Cecille, estava em choque, com a queda seu braço soltara de vez e então buscou desesperadamente pelo chão, buscava cegamente. Onde estava? Onde estava? Ouviu as palavras do homem, mas não respondeu. Era óbvio e o desespero ficava ainda maior. -:-:- Não olhe! Estou horrível. -:-:- Murmurava continuamente, sabia que estava pavorosa sem um braço, um olho e o outro pendurado. E então achou o braço e o puxou para perto de si cuidadosamente, estava perdendo muito enchimento. Logo ficaria tão leve que o vento a levaria. -:-:- Sabe costurar? -:-:- Perguntou com a voz cheia de esperança, sentindo o... Como os humanos diziam? O coração pequeno. A boneca balançou a cabeça negativamente afim de lembrar-se: Não tinha coração. E o Céu não fingia ser o mar. Ela não podia fingir ser humana.

Agora ele podia notar, a garota era feita de pano, não era humana, mas tinha vida, estava claro. E como isso era possível o homem não sabia. Richard olhou para os lados, já podia notar que estavam começando a incomodar a passagem das pessoas.

-Eu sei costurar sim, que tal... Bem, primeiro venha aqui.

Entrou em uma rua menos movimentada e olhou para a garota.

- Pronto, minha casa é na próxima esquina, chegando lá eu vejo o que posso fazer por você.

Olhou a boneca ela não parecia ter nada valioso consigo, bem, então que fizesse aquilo como uma boa ação pelo menos.

E Cecille seguiu o estranho o mais rápido que pode levando em conta sua visão. Era de fato muito ingênua, afinal era uma boneca e talvez por causa deste defeito que estava neste estado. Por confiar demais em humanos. -:-:- Sabe costurar olhos? -:-:- Perguntou em tom desesperado lembrande-se do olho em seu bolso, seria maravilhoso voltar a ver! Mas ter esperanças demais nem sempre era bom, afinal. Mas quando encontrasse seu mestre! E então a boneca entrou em desespero novamente, como poderia encontrá-lo se estava quase cega? -:-:- Por favor! Diga-me que sabe costurar olhos, preciso deles! Ou pelo menos um deles! Pobre Cecille sem mestre. -:-:- Reclamava a boneca e deixou-se cair no chão. Era o fim, jamais seria bela outra vez, nem bem tratada, jamais poderia servir seu mestre. Como estaria seu mestre sem ela? Talvez sentisse falta de seus desenhos. Pobre mestre solitário!

-É aqui...

Apontou uma pequena e acabada estalagem, não era sua casa mesmo, ele só estava ali por uns dias. Ouviu a pergunta da boneca e ergueu uma das sobrancelhas.

-Sabe a maioria das pessoas não ia gostar que eu tentasse costurar os seus...

Foi interrompido pelas reclamações da garota que já fora ao chão.

- Vamos! Levante-se e fique quieta, se não não farei nada por você.

Disse já meio irritado enquanto abria a porta do prédio.

Pobre boneca tola. Logo se levantou e ficou em silêncio enquanto seguia o estranho. Alguns humanos realmente não eram pacientes, a boneca pensava. Mas se eles soubessem! Como era terrível sua vida, poderia chamar aquilo de vida? Bonecas viviam? Era uma pena não ter ninguém para perguntar! Apesar de se orgulhar de ser a única boneca existente, às vezes sentia-se terrivelmente solitária por conta disso. Os humanos que tinham a sorte, nunca estavam sozinhos. Menos seu mestre. -:-:- Mas prefiro ser sozinha a ter Moros como deus... -:-:- Murmurara a boneca incapaz de se conter. Pois jamais iria se conformar com tamanha covardia. Destino! Era injusto, com toda a certeza. Lembrava-se de Aloy. Pobre Aloy, pois seu deus era injusto. Mas então, pela primeira vez em anos uma idéia surgiu em sua mente. -:-:- Perdoa-me, senhor. Mas poderia me ensinar a costurar?

Um homem mau encarado que estava sentado em um balcão mencionou algo sobre o pagamento, mas Richard simplesmente fez um movimento para que conversassem depois. O lugar parecia não ser limpo há muito tempo, a poeira estava acumulada em alguns lugares. Abriu uma porta no fim do corredor e entrou no quarto. Uma mochila grande estava em cima de uma cama que era, por sinal o único móvel do lugar sem contar uma cadeira de madeira próxima a janela. Pegou a mochila e jogou-a no chão.

-Pode se sentar.

Escutou o pedido da boneca.

-Você é bem aproveitadora, eu só ia te ajudar a se levantar e agora virei professora de costura. Bem, é melhor você não tentar se costura logo de primeira.

Olhou ao redor e uma cortina surrada lhe pareceu uma boa ideia, arrancou o pano da janela e jogou-o na cama.

-Você tem agulha e linha?

Tinha se esquecido que não tinha aquilo.

E a boneca sentou-se rapidamente na mochila, embora não fosse necessário, afinal era apenas uma boneca. Ouviu as palavras do estranho e abaixou a cabeça. -:-:- Sinto muito, mas... Professora? Esta é a segunda vez, acho que confundo os sexos. Uma vez vi um garoto e pensei que fosse uma garota. Sinto muito por isso. -:-:- Murmurava desesperada, e rapidamente retirou a agulha e o carretel de linha do bolso logo estava entregando para a estranha q enquanto aguardava pacientemente. Estava feliz, pois finalmente sua vida se tornaria mais fácil. Sabia que era vergonhoso uma boneca que não sabia costurar e não podia deixar ficar feliz por finalmente ter encontrado uma professora.

-Não na minha mochila...

Disse, notando que não podia esperar muito da boneca. Mas esse erro foi útil para ela, caso contrário ele se irritaria de verdade com a confusão entre os sexos. Richard não era muito calmo, mas a ingenuidade da boneca foi motivo suficiente para que não se exaltasse.

-Não garota, foi só um modo de dizer.

Pegou os instrumentos necessário para a costura e olhou. Posicionou o braço, tendo cuidado para não deixá-lo para o lado errado, mesmo tendo uma vontade oculta de fazer isso.

-Espero que realmente não doa, pois vou começar. Então preste atenção e tente repetir.

E pôs-se ao trabalho, o fez lento para que ela pudesse entender. Parou algumas vezes para tomar mais um gole da bebida, mas logo terminou o braço.

-Parece firme.

E se pudesse corar, coraria, mas pano não se tinge sozinho, a boneca sentiu uma imensa vontade de desaparecer! Como era tonta! Suspirou e logo ficara ainda mais envergonhada. Era um homem, de fato. -:-:- Desculpa-me, por favor. Sou uma tonta, eu sei. Sinto muito por isso. -:-:- Mas logo a boneca sorriu com o comentário do estranho. -:-:- Não sinto dor. -:-:- Disse e novamente sorriu, um sorriso paciente, mas esperou que ele terminasse para lembrar-lhe de um problema. -:-:- Não enxergo muito bem, deverias ter começado pelos olhos para que eu pudesse aprender, mas o braço está ótimo, agradeço-te por isso. -:-:- Comentou em tom calmo, pois realmente sentia seu braço firme e logo foi testá-lo fazendo diversos movimentos, estava realmente perfeito.

Na verdade ele estava com um pouco de receio de costurar o olho da boneca. Mas se ele dizia realmente não sentir dor ele poderia tentar.

-Bem, está pronta?

Perguntou examinando o olho pendurado, iria começar por ele e depois faria o outro a partir do zero. Tentaria caprichar, era como uma cirurgia plástica, por isso demoraria mais.

-Eu sou Richard. E você?

Queria conhecer melhor a estranha... Criatura? Bem, era a única boneca com vida que conhecia.

Cecille deu um sorriso e balançou a cabeça em sinal positivo enquanto esperava que ele realmente conseguisse costurá-lo. Ouviu então a pergunta e sorriu, pois gostava quando as pessoas conversavam com ela. -:-:- Cecille! Você é estranho, sabe? Sempre me perguntam primeiro o que eu sou e não o meu nome. Que interessante! -:-:- Exclamou alegremente enquanto mexia os dedos de seu braço recém costurado, estava um tanto nervosa com seus olhos, e se ele os costurasse mas ela não voltasse a ver? Não, claro que não, pois era uma criação perfeita. Era única em todo o mundo. Era impressionante de fato o que a recuperação de um braço pode fazer na estima de uma boneca vaidosa.

-Devo ser estranho, realmente.

Richard riu alto com o comentário de Cecille. Deu mais alguns pontos antes de voltar a falar.

-Mas sabe? Não sou tão estranho a ponto de não querer saber o que você é. Sabe, você deve ser tão estranha quanto eu.

E voltou a dar atenção ao trabalho, quase terminando. Ele imaginava como a boneca se sentia, afinal ele estava com o seu olho em mãos. Como seria não sentir nada? De qualquer modo só esperava que o olho estivesse bom, pois ele havia terminado.

A boneca sorriu pacientemente, pois no final sempre perguntavam o que ela era, embora a resposta fosse óbvia. -:-:- Sou uma boneca, ora essa. Mas não sou estranha, sou única. A mais bela boneca existente, embora o tempo e os humanos tenham me maltratato, mas quando encontrar meu mestre você verá que falo a verdade. -:-:- Comentara em tom enérgico e já ia falar outra coisa quando parou com a boa aberta. Levantou-se rapidamente e andou pelo quarto, meio andando meio saltitando. -:-:- Posso ver! Eu posso ver! -:-:- E puxou Richard para um abraço tamanha era sua felicidade! Nem tudo estava perdido, afinal. -:-:- Agradeço-te! Se puder costurar o outro eu poderia alcançar o Céu de tanta felicidade! Se eu tivesse um coração diria que ele está leve e pulsando de alegria, mas sou apenas uma boneca e bonecas não tem coração, assim como o Céu não tem água como o mar. É inútil me comparar com um humano, mas às vezes é necessário para que possam me entender. -:-:- Falara rapidamente em meios aos saltos, pois já havia soltado Richard para continuar a saltitar. Nunca estivera tão feliz!

Deu um gole no cantil e escutou-a.

- Só que você está viva. Isso é estranho.

Disse, com medo da empolgação da garota ao falar de seu mestre, mas ficou com um medo maior quando ela o abraçou. Ficou imóvel, sem compartilhar toda aquela alegria.

-Okay, okay, eu disse que ia costurar os dois. Agora fique quieta para que eu possa fazer efetivamente alguma coisa.

Estudou um pouco o olho solto para ver como ele faria aquilo, não demorou muito para começar, logo fazia o mesmo processo do outro olho.

-Mas me diga de onde você veio?

A boneca deu de ombros, não via nada de estranho em estar viva. Mas obedeceu e tornou a ficar quieta enquanto esperava que ele costurasse seu outro olho, entretanto era impossível esconder sua alegria por conta disso sorria. Talvez fosse estranha, de fato. Mas então aquela pergunta, como poderia dizer? Não sabia ao certo. Logo sorriu, pois uma boa resposta lhe viera a mente. -:-:- Vim do pano. Pois sou feita dele, não sou? Meu mestre me fez, mas desapareceu há muitos anos, pobre Cecille! Vagando sozinha, apenas com o Céu como companhia, ai de mim. -:-:- Disse em tom infeliz, mas sua infelicidade não durou muito, pois voltaria a ver e era isso o que importava. Sua vida se tornaria mais fácil. -:-:- E você? Não veio do pano como eu, obviamente.

-Não era esse tipo de resposta que eu queria, mas okay, está tudo bem.

Não respondeu logo, progrediu mais um pouco na sua "cirurgia" para então responder

-Não vi do pano, de fato. Nasci e cresci em Nebista. E este era um exemplo de resposta que eu queria.

Disse dando de ombros. E poucos minutos depois o olho estava pronto.

-Finalmente, agora você pode ver tudo de novo.

Levantou-se e foi mexer em algo na sua mochila.

A boneca suspirou, afinal sempre entendia errado o que ele queria dizer. Mas continuou calada, pois não sabia dizer ao certo o nome da cidade, levantou-se rapidamente e passou a mão na frente dos olhos com um sorriso besta no rosto. -:-:- Posso ver, finalmente! Muito obrigada, Richard! -:-:- Exclamara a boneca enquanto olhava para todos os detalhes do quarto, uma mancha na parede, a cortina em cima da cama e a cadeira isolada. Observava Richard mexendo na mochila e depois observou seu braço recém costurado. Como era bom ver! -:-:- Às vezes é bom ser uma boneca, um humano não poderia tornar a ver, não é? Mas se eu fosse humana nada disso teria acontecido. Mas se eu fosse humana estaria velha e não teria um mestre. Talvez nem existisse, é assustador, não é? Mas fico feliz em existir, isto é algo com que teu deus não contava, não é? Pois sou uma boneca! -:-:- Dizia feliz enquanto girava com os braços abertos, era tão divertido ver o quarto passando rapidamente. Mas logo parou, pois provavelmente Richard ficaria assustado, como da outra vez. Pobre Cecille que não conseguia conter sua alegria. -:-:- Deve estar cansado, humanos se cansam fácil, não é?

-Se você fosse uma humana você não seria você. Você é uma boneca, e acabou, não é isso? E se você existe é porque deveria existir, não é óbvio, é o destino.

Disse como se fosse a coisa mais simples do mundo, afinal era o básico da religião, Moros o Senhor do Destino. Tirou uma capa preta surrada de sua mochila e a botou por cima do corpo. Ajeitou algumas coisas presas em seu cinto, outra na bota e com um grande último gole terminou sua bebida.

-Cansado? Não posso estar, afinal vou trabalhar agora.

Disse com um sorriso estranho no rosto.

-Vamos, eu tenho que ir.

E foi embora, agora com uma boneca menos estranha ao seu lado.