☄ Mares

"Permeou a sua mente, a voz que não poderia ser humana. Como voz de anjo, aqueles seres dos contos infantis, que viriam a proteger as crianças e velar seu sono na penumbra noturna. Talvez fosse. Mas não era, quando Álef pôde focá-la com seus olhos ardentes. Assistiu-a, curioso. Não surpreso, em momento algum! Sim, Álef conhecia os contos do mar. Conhecia todos os contos do mar! E teria sorrido à sereia se lhe fosse prudente sorrir. Arrastou o corpo a fim de puxar as pernas afogadas nas águas calmas. Seus membros doíam. Talvez quebrados. Ou só atordoados. O máximo que pôde foi ajoelhar-se, de mal jeito, na face lisa da rocha. E se encantar com a beleza de tal criatura diante de si. Estaria ele, delirando?

- O oeste... Sugeri à tripulação que fôssemos ao oeste... - Ele retomava as lembranças, pesaroso. - Aqueles malditos! Brutos! Covardes! Queriam provar o quão eram corajosos enfrentando os mistérios do oeste... Tentaram me matar quando reconheceram os perigos do oeste."

"E quando o tocava, sim, aquela delicadeza do toque, o fazia pensar brevemente, erroneamente, numa suposta bondade por parte da sereia. E nada fazia, talvez atordoado ou encantado, quem saberia? Álef sentiu o dedo selar seus lábios antes entreabertos de dúvida, e nada mais disse. Só veio a retomar a consciência do que estava a ocorrer quando viu-a transformar-se em sua igual de espécie. Uma humana, agora. Sob uma luz sonsa de uma lua cor de mel, que vinha acompanhada das suas fiéis seguidoras, as estrelas douradas. Sim, foi afastado à força pela sereia, afundando metade do corpo na água e agarrando-se à rocha, como que na sua posição inicial. Álef escalou-a e assistiu ao desespero da, não tão mística, sereia. Ainda que permanecesse atraente. E seria um conto do mar então, se Álef retornasse às terras de Lyrienso um dia, o seu encontro com uma sereia sobre uma rocha no temido oeste. Talvez quisesse ajudá-la, por não ter mais o que fazer naquelas condições.

- Como eu poderia te ajudar? E se eu ajudar, exijo algo em troca!"

"E para as sereias, humanos eram dignos de contos macabros sobre filhos abandonados ao mar. Álef imaginava, os pais desses tais filhos. Os filhos do mar, dos brutos que por ali passavam. E as águas agitaram-se levemente, sim! Quando um navio de pequeno porte dividiu aquelas águas em duas, e homens ergueram seus lampiões para ver melhor as duas figuras sobre a rocha. Dois desolados. E o garoto não gostava da ideia de serem descobertos por uma tripulação pirata. Uma ponte de madeira foi estendida para até a beira da rocha. Cinco homens vinham. Com o ouro nos dentes, ou nas orelhas na forma de brincos. E suas vestes largas, como as do menino. Arrastaram-no ponte acima. E quanto à sereia, visto a suposta resistência dela em se colocar sobre duas pernas, fora levada por dois homens. Cada um oferecendo um ombro para seus delicados braços, pelos quais a carregaram. A ponte foi recolhida, e o navio partiu. Alguns tripulantes sorriam diante da ideia de uma mulher à bordo. Mas pouco era dito entre eles. Foram largados em uma cela qualquer no interior da navegação. Sob a luz âmbar de uma luminária que balançava conforme o navio avançava. Um marujo comentou algo sobre a mulher antes de trancá-los lá. Sim, era certo de que tinham interesses, partindo de seus instintos... O garoto meramente sentou-se, encostado à parede de madeira podre. Escutando os roedores soltos por ali..."

"Um rato a distraía. Fazia dela, curiosa, confusa, talvez? Ou era só medo de uma criaturinha imunda daquelas? Sim, Álef viu o roedor, e com seu ar solene, respondeu sem mais.

- Um rato... Que não pretende te violentar como aqueles homens. Em seu lugar, eu não temeria o rato...

E ele espiou a lâmpada. A luz fraca, sépia. Como uma estrela ameaçando não mais brilhar. Sim, por algum sentimento de culpa, Álef levantou-se e foi até a sereia de pernas. O garoto estendeu um braço à ela.

- Vamos, segure. Tente se apoiar no meu braço e faça algum esforço para levantar! Não quero que aqueles homens toquem em você, se me entende..."

"Pois sim, Álef se viu agarrado à sereia. E sentiu a chama de seus instintos, ardendo no coração acelerado. E talvez fosse um menino levado, mas omitia os seus desejos. No chão, com a cabeça da sereia apoiada sobre seu peito, escapou-lhe uma leve risada e um olhar cheio da malícia. Envolveu-a nos seus braços e olhou por entre as grades, para a escuridão do corredor.

- Hmmm... Eles são brutos, mas não são espertos... Temem os contos sombrios do mar... E suas criaturas... Algumas mentiras sobre você bastariam para te abandonarem no mar...

E lhe era um esforço não cair na tentação, conforme sentia ela junta a ti."

"Para o garoto, pouco daquele medo de falhar lhe interessava. Era confiante, e certo de que, como as águas regiam aquela imensidão oceânica, as suas palavras seriam capazes de persuadir o mais astuto dos capitães! A sua língua afiada lhe era um atributo, que alguns homens do mar reconheciam. Sim, Álef era famoso por ser um bom guia aos marinheiros e piratas dos mares pelos quais passara! Em seus pequenos dezessete anos de vida...

- Ora, não duvide dos meus poderes de persuasão!

E quando aqueles olhos encontraram os seus, que eram castanho escuros, Álef se viu hipnotizado por tamanha beleza. A esmeralda daquele par de olhos.

- ... Não sinto medo... Mas temo o que você pode fazer comigo...

Sim, uma brincadeira. Mas não seria mentira dizer que a sereia lhe encantava, e isso era provocador! A ponto de ameaçar beijá-la, inconsequente do que se passava. E seria digno de levar um tapa."