☄ Kância

Passamos pelas portas giratórias que antecediam à plataforma. Como eu apreciei aquele giro! Nunca havia visto tamanha modernidade! Nunca inventarão algo melhor! Na ponta esquerda da plataforma não havia parede, era aberto para os céus poluídos por onde os fios do teleférico desciam, para até a cidade que eu não podia ver, mas estava lá. Devido a isso, eu podia sentir os ventos querendo derrubar o capuz da blusa e revelar o meu rosto, mas eu o segurava bem. Embarcamos no teleférico (e não um trem, aos leitores imaginários que um dia venham a ler isso) que pendia em uma das duas linhas. No pequeno espaço do transporte, eu vi dois bancos largos, cada um em um lado, rentes às paredes e as janelas largas. Estranhamente não havia muita gente, eu diria que éramos cinco. Supus que todas aquelas pessoas que eu vi, tomavam o rumo contrário ao nosso. Todos acomodados nos fofos bancos, o guarda fechou a porta. O teleférico se moveu, deslizando lentamente pelo fio, deixando a estação e as montanhas para trás e mergulhando na fumaça negra de poluentes, conforme descia. Me levantei e fiquei a procurar algo além da fumaça, com o nariz quase encostado no vidro das janelas.

Com as mãos coladas ao vidro, já geladas, eu podia enxergar melhor. As chaminés ao longe, tão mórbidas, tão melancólicas. Expelindo seu lixo nos céus, que nunca mais viriam a ser azuis. Como quando se borra no céu dourado que desenhara, um traço mais escuro e indesejado, que se filtra no papel e de lá nunca mais sai. As demais pessoas do teleférico me olhavam torto, porque eu era o único curioso o bastante para estar de pé frente à janela. Um solavanco e o teleférico parou, quase me derrubando. Me aprontei para descer de cabeça baixa, quando um guarda abriu a porta e nos desejou boas vindas, sem o entusiasmo e a sinceridade que nas suas palavras poderiam estar. Desci, puxando um pouco o capuz para tapar os meus olhos. Um criminoso. Basicamente, essa estação não era muito diferente da outra. Maior, apenas. Relógios de ponteiros dourados indicavam as sete horas da noite. Eles estavam pendurados nos tetos altos e abobadados. Contrastavam com os tijolos marrons, que compunham a construção. Uma voz feminina saía de caixas de som presas às paredes, solicitando a presença de algum funcionário em algum lugar daquele labirinto. Acompanhando Gale, era certo de que encontraríamos a saída. E ela estava lá, portões de ferro abertos para a ida e vinda dos transitantes derrotados ao fim de mais um dia. Lá fora, enchi meus pulmões daquele ar sujo que me provocava tosse. Cercado de prédios velhos do centro, e o som das buzinas socadas pelos motoristas irritados com o trânsito.

Eram ruas a atravessar, multidões a se desviar, e eu tentava manter meu foco na figura esguia de Gale. Acelerando o meu passo para não perder ou atrasar. De relance, vi um homem muito velho me estendendo uma cartola velha e rasgada. Seus olhos cansados suplicavam pela minha misericórdia, sua cartola suplicava por minhas moedas. Mas eram tão rápidos os meus passos, e tão breves os vislumbres que eu tinha da cidade, que mal tive tempo de refletir. Sob as luzes dos letreiros de bares e motéis recém-abertos, ou os postes de luz, figuras esguias e elegantes que eu nunca vira antes. Borrões esbranquecidos dos faróis de velozes carros, e seus motores barulhentos. Caos. Até eu enxergar um estabelecimento maior que os demais que eu vira, com letras enormes de pé sobre o telhado: "Editora Capa de Ouro". Ouro, era o tesouro de tê-la encontrado.

Segui o homem conforme ele me guiava. Eu erguia o queixo e afastava o capuz dos olhos, para ver melhor aquele prédio que se erguia para o céu negro da noite. Assisti ao homem subir sobre o caixote. Eu espiava a minha própria sombra na paranoia de sermos vistos. Meu coração tinha pressa, pois meu sangue corria mais veloz na adrenalina do momento. Aberta a janela, me enfiei por aquela pequena passagem, passando uma perna de cada vez para dentro, depois o corpo inteiro. Minha altura era mediana. Tirei o capuz e deslizei minhas mãos sobre o cabelo, enquanto acostumava meus olhos à escuridão. Um pequeno escritório com alguns armários e pilhas de pastas, onde residiam documentos e contratos. Fui tateando a parede conforme avançava, em busca de alguma porta. Vozes ecoavam não muito longe dali, o que me fazia pensar que havia funcionários ali ainda.

Assenti a ele. Eu tinha a dúvida estampda na face, era tão claro mesmo na penumbra da sala! Que eu procurava? Eu tinha minha mão sobre a maçaneta da porta ornamentada, e outra no bolso do blusão, brincando com o cabo do canivete. Girei a maçaneta e fui para o corredor. Uma lâmpada fosca pendia no teto, no qual as sancas de gesso me distrairiam se eu não estivesse tão focado em meu objetivo. Um funcionário já havia dado às costas e caminhava para o fundo do corredor, mas se virou quando escutou ao som da porta que eu empurrara bruscamente. Ele podia ver, eu apontando o canivete a um homem de traços finos e que, ao jugar das vestes, possuía algum título importante em um mundo onde todos sangram. Eu poderia fazê-lo sangrar, adoraria enfiar o canivete em sua garganta...

- Você, homem de alguma influência... Que há de errado com essa editora? Onde está o último livro, que a tal família Manson enviou?

Sob o efeito de desespero que o som das sirenes me proporcionavam, me afastei do homem de súbito e olhei para Gale. Fugiríamos.

- É escolha sua, o tal futuro desse reino! Dar a liberdade às pessoas, ou deixar que morram cegas? - Eu dizia ao homem, quase tropeçando nas minhas palavras. - Te pagaremos! - Respondi por Gale, ainda que errado.

Corri para a sala anterior e saltei pela janela. Correria sem rumo para longe dali, até tomar alguma decisão com Gale.

Era noite boêmia no centro da cidade. Mulheres elegantes com seus cachos dourados, soprando fumaça que tragavam no elegante ato de fumar. Eu as observava, e via esses sopros sujos se unirem à espessa camada de poluição dos céus, que tornava aquela noite extremamente negra. O centro era pouco atraente, e nas noites ali formava-se uma orgia urbana. As luzes dos motéis piscavam e quase me cegavam, quando eu atravessava o cenário devastado pela ganância e poder dos que gastavam suas moedas em clubes e jogos de azar. Eu só buscava por alguma livraria, mesmo que fosse tarde. Não encontrei, mas pude parar perante à vitrine de uma, com as mãos sobre o vidro e os olhos percorrendo as amostras de livros, taxados com seus preços absurdos. Busquei pelo nome, e ali estava! "Por debaixo dos panos" em letras garrafais que se inclinavam, elegantes, e destacadas em dourado na capa azul marinho que aparentava ser de veludo. Meus olhos brilhavam diante do livro. Era como se eu fosse um pirata que enterrara o meu mais precioso tesouro, e admirava que houvessem o encontrado. E o reconhecimento estava bem ali, na etiqueta de preço alto. Mas eu não poderia tocá-lo por através da vitrine. Só contemplaria como um filho já muito velho para as bajulações de um pai.

Eu assenti em concordância, quando comentado sobre o pagamento do dono da editora. A quem eu era grato, que isso esteja claro. Franzi o cenho para aquela barreira de vidro, a vitrine, que eu desejava quebrar para tomar o exemplar do livro. Quem notaria se o fizéssemos? Naquela confusão e zumbidos diabólicos! Olhei para os lados, com um olhar atento na busca de segurança, na busca da distração dos demais, erguendo o pescoço para ver melhor. Estavam impregnadas nos clubes e bares.

- Precisa ler! Quero que leia! É certeza, esse livro pode expressar mais que minhas vagas palavras... - Parei por um momento, voltando meu olhar à vitrine e impotente. - Tem de ler. Você acreditaria.

Pois era verdade, mesmo que Gale tivesse me ajudado a alcançar tal objetivo, eu me pegava duvidando de que ele acreditasse em descrições surreais de um adolescente. Era mais que fantasia, era real!

Não me demorei a pensar na pergunta. Eu apenas sorri de canto a ele, olhando-o com aquele meu olhar cansado mas sedento de vontade. Era a coragem, fazendo pulsar mais forte o coração, e meu sangue em ebulição nas veias. O meu ato de vandalismo representaria a eclosão da verdade ao mundo, a queda de um muro invisível muito próxima de todos nós. Me afastei centímetros para trás e joguei meu pé contra a vitrine, em um chute que rompeu um pedaço do vidro e o desfez em pequenos cacos.

- Que valem essas notas, senhor? Quando esse tal mundo nada mais é que uma mentira, sem valor?

E tomei o livro da vitrine, com algumas pessoas observando, mas distantes. Entreguei nas mãos de Gale. O alarme soava, devíamos correr.

Corri seguido dele, esbarrando naquelas pessoas atordoadas pelo furto. Ou atordoadas de algo mais, bebida e outros vícios, talvez. Seguia Gale por entre aqueles prédios que se erguiam com fachadas cheias de ornamentos em gesso. Poucos carros por ali cruzavam àquela hora. Entrei no beco seguido de Gale e desacelerei o meu passo, espiando por cima do ombro e nada vendo além da luz de um poste. Me encostei à parede de tijolos, de algum prédio. Ofegante, virei a cabeça para olhá-lo.

- Quero pedir perdão. Leia.

Me sentei, junto às latas de lixo reviradas por vagabundos famintos que, provavelmente, eu confundia com aqueles sacos de lixo espalhados pelo beco. Fiquei a acompanhar as expressões de Gale durante a leitura, tentando adivinhar em que trecho ele estava. O livro, como eu me lembro, abria com o enigma sobre a criação do mundo, copiado da mansão dos inexistentes Manson's. Em seguida, eu contava a experiência da viagem para até o limite do mundo, nos mínimos detalhes. Depois vinham os questionamentos pessoais sobre a religião de Moros e o medo que sua figura imaginária impunha nas pessoas, tornando-as impotentes e dependentes. Eu deveria admitir, era um livro curto, porque nada mais eu pude escrever.