☄ Kância

Minhas pálpebras pesavam e ameaçavam me isolar na escuridão, de tão quieta que era a noite, e de tão cansado que eu era. Sentia sono. Escutei o som diferente de um virar de página, foi quando o livro fora fechado. O som ecoou dentro da minha mente sonolenta, amplificado no silêncio. Meus olhos verdes arregalaram-se para ele, esperando por palavras que pudessem expressar alguma opinião construtiva.

- Que acha?

E suas palavras me revitalizaram. Barulho, era o que eu queria. Todos os sons de uma catástrofe, a sinfonia do caos, e violinos dramáticos! Uma revolução com uma épica trilha sonora. E pensar em revolução me causara insegurança naquele momento. Meu pequeno sorriso se desfez e eu desviei o olhar para o chão sujo, apanhando algumas páginas de jornais espalhadas, como distração. Que eu faria, um garoto de catorze para quinze anos, abrindo uma revolução? Que malucos além de Gale se alinhariam a mim?

- Eu estaria satisfeito. - Abri uma página qualquer do jornal, e passei os olhos sobre as letras miúdas sob uma foto de um rosto familiar. Empalideci com a leitura, petrificado pelo pavor. - "Mr. Coltrane foi encontrado morto na noite do último dia treze, em seu apartamento da Avenida Industrial. A causa da sua morte permanece desconhecida. Mr. Coltrane era conhecido devido sua posse sobre a editora Capa de Ouro, cujos funcionários coincidentemente morreram na manhã do mesmo dia.". Que loucura é essa?

Fiquei de lábios cerrados, encarando a parede de tijolos do outro lado, onde apodreciam cartazes de eventos ocorridos há anos atrás. Ou anunciavam a venda de algo usado, e um telefone. Eu nunca vira um telefone, mas sabia de sua função. Encostei a cabeça à parede e fechei os olhos, tentando mergulhar nos mais belos pensamentos que eu pudesse, para me levar para longe daquela cidade onde pairava a nuvem negra, que agora era bem mais que poluição. As consequências que marcariam os nossos passos.

- Cá estamos vivos, vê? Duvido que suspeitem de nós.

Me levantei com certa vertigem, imitando Gale. Eu fizera de Gale, um fugitivo feito eu, de crimes meus. Quantos mais levariam a culpa que deveria ser minha? Nada daquilo me era satisfatório. Eu assenti, como cúmplice do crime, e não mentor. Partiríamos, sim! Pois os cartazes seriam mais, agora. Eu não veria apenas o meu rosto, ou o de Anne - com essa, eu sentia preocupação desde que ela ficara só -, agora talvez surgissem cartazes do famoso rosto de Gale. Que era injusto. Mas eu acreditava, todos os nossos "crimes" seriam amenizados diante daquele crime maior, que era a mentira mundana.

Onde estava agora? Oh Leharuin? O jovem observava com tristeza aquele lugar, os bolsos pesados e a cabeça baixa. As borboletas voavam ao seu redor como de costume e ele permanecia escondido, observando seus colegas de espécie. Sentia pena das crianças e do que se tornariam no futuro.
E então saiu de seu transe.
Um choro. E lá estavam um grupo de crianças, duas delas já apresentavam a perda da inocência. Era mini-adultos. E a que chorava estava no chão, caída, assim como as frutas. Os mini-adultos riam e então amassavam as frutas, mas um deles parou. Vira a borboleta. Abençoado seja o medo! Tão conhecido era Leharuin ali, que apenas uma borboleta era motivo de pavor. Ou de alegria. E logo os dois mini-adultos corriam e gritavam desculpas desesperadas que Leharuin não tinha paciência para ouvir.
A criança ergueu o olhar e lá estava seu herói, estendendo-lhe a mão. "Leharuin, Leharuin!" gritava cheia de alegria. E o que ele fez? Pegou sua mão e levou a criança em um passeio, comprou-lhe novas frutas e pão, fez-lhe perguntas breves e descobriu que aquele era um dos poucos que ainda possuía pais. Comprou então uma garrafa de vinho, e algumas batatas e outros legumes. A noite seria fria e maravilhosa para uma sopa.
Logo a criança estava em casa, completamente feliz com suas compras e - ao que julgava - seu novo amigo. Mas Leharuin sumiu antes que os pais do pequeno o vissem, apenas uma borboleta ficou, para que eles soubessem quem ajudara. Ficou escondido tempo suficiente para ouvir um clamor de "Obrigado, obrigada!" e então foi embora, indo para longe daquele lar. Observava com tristeza aquela cidade, lembrando do garotinho. Até que um choro o despertou de seu transe, mas não era o mesmo choro...

Uma telha caíra. Maldito fora aquele choro, tão próximo, tão alto! Agora alguém aparecia na janela e tentava em vão visualizar seu próprio telhado, gritava, ladrão! Ladrão! Embora pudesse ser apenas algum gato. Era isso que sempre irritara Leharuin, a capacidade que seus colegas de espécie tinham de pensar no pior.
Descia com habilidade do telhado, até que ouvira uma nova janela se abrir, iriam vê-lo. Tentou desviar sua rota e por pouco não caíra em cima de uma jovem de estranhos cabelos verdes que passava.
— Sinto muito.
Respondeu em um tom irritado. Que diabos acontecia com aquela casa? Então tudo foi explicado. Era realmente um ladrão, que saltara agora da janela que fora aberta. Idiota! E pensar que por culpa daquele inútil quase fora visto! Leharuin evitava os olhos dos companheiros de espécie, eram curiosos e cheio de malícia. Num surto de fúria pegou o ladrão que se levantava com dificuldade e habilidosamente amarrou suas mãos com uma tira de pano. "Leharuin!" o ladrão guinchara.
— É. Boa noite.
E desferiu um soco no rosto do ladrão. Que inútil era! Desmaiara com um único soco! Deixou-o ali jogado no chão, logo alguém o acharia e este seria preso. As borboletas voavam agitadas ao redor do rapaz cujos olhos castanhos tão quentes haviam esfriado enquanto fitava o corpo largado no chão. Já até se esquecera da garota de cabelos estranhamente verdes que provavelmente teria visto tudo.

Então ela era uma ladra! Leharuin deu um sorriso zombeteiro enquanto os encarava.
— Se eu perdi algo? Imagino que não, mas sei de alguém que irá perder em breve.
Piscou brevemente enquanto ia se afastando lentamente, mas parou e tornou a olhar para os dois, o sorriso se tornando mais presente.
— Até porque, já dizia o ditado: Ladrão que rouba ladrão, tem cem anos de perdão.
Então Leharuin se afastou, tomando consciência de que o homem suspeitava de quem era aquele estranho jovem de cabelos azuis, perseguido por borboletas. Mas a jovem? Leharuin duvidava um pouco que ela soubesse, teria que investigar bastante e talvez procurá-lo um dia, quando notasse que o objeto valioso e raro de seu cliente havia sido roubado. Mas isso é coisa do futuro e Leharuin tinha muitas coisas para fazer no presente para se importar. Apenas uma borboleta ficou, a orientadora. Quando ela voltasse, Leharuin sabia que seria a hora de agir.