☄ Miskronie

Era eu, um garoto de blusa de lã abotoada cor de vinho, calças largas e cabelos demasiado longos que emolduravam meu rosto vazio de expressão. Debruçado na mureta esquerda do convés, eu escutava o som das águas se partindo conforme a proa as rasgava para abrir caminho. O sol irradiava forte sobre as águas do lago que acabávamos de alcançar após uma longa travessia de um rio. Feixes luminosos, reflexos de raios solares, dançavam pálidos nas águas claras. Uma notável ponte cortava o lago ao meio e terminava perante os portões da gloriosa Miskronie. O vazio de meu rosto fora ocupado por uma surpresa do contemplar que meus olhos me permitiam. Não negaria, que estava admirado! Eu podia ver as construções neogóticas embrulhadas no bronze cintilante de seus ricos detalhes, aos pés da mais magnífica torre do relógio que eu pudesse imaginar, ela se elevava no centro da cidade. Todo esse ambiente contrastando com o verde das montanhas que cercavam as costas da cidade em uma meia-lua. Servi meus braços apoiados na mureta, de descanso para meu queixo, e fiquei a observar a cidade da qual nos aproximávamos, como uma criança curiosa mas assustada. De ambos os lados dos portões principais, estendia-se um muro de grades separando a fachada da cidade, do lago.

Minha bolha de pensamentos estourou, os devaneios vazaram, sangraram. Eu não tentava mais focar os olhos sobre a torre na busca de mais detalhes. Espiei Anne por cima do ombro. Ela ainda girava o timão, no patamar elevado dedicado ao capitão. À capitã, eu diria. Apontei para um pedacinho de terra plana aos pés da cidade, e próxima do muro de grades. Teriam de saltar o muro, eu imaginava. Respondi-a com a voz rouca levada da melancolia sonhadora que só pertenceria a mim.

- Gosto dali.

Me virei para encarar Miskronie, e deleitar-me na sua beleza e fantasia. Tão longe de tudo o que vivi. A mais bela terra de mentira. No canto do meu olho eu tinha a ponte, sem foco. Mas quando tomei-a como alvo, vi uma aglomeração de pequeninas pessoas, àquela mediana distância. Voltavam sua atenção ao barco...

Senti o casco encostar na terra firme, de leve. Ergui a cabeça para espiar por através das barras de ferro do muro, a cidade tão próxima. Bastaria que eu saltasse para fora, eu o fiz e perdi o equilíbrio ao tocar os pés na terra molhada pelas águas do lago, caí mas levantei como se nada ocorresse. Parei e olhei para Anne, no barco. O belo verde dos meus olhos a convidavam para vir. Subi uma ladeira de terra e grama para até o muro de grades. Deslizei as mãos sobre as frias barras de ferro. Por entre os vãos entre uma barra e outra, eu espiava uma rua moderadamente movimentada. Alguns me espiavam, atônitos. Eu teria de saltar o muro...

Uma Anne atravessou por cima do muro. Vi-a em contraste com o azul do pano celeste que carregava nuvens de algodão lilases. Escalei o muro e, quando no topo, saltei para ao lado de Anne. Eu via cartolas, vestidos, monóculos, pessoas elegantes! Com suas expressões incrédulas à mostra, misto de raiva e medo. Mal conhecia a cidade, mas sabia eu que o palácio real estava na extremidade oposta à nossa. Atravessaríamos a cidade. Acelerei o passo por ruas qualquer, estreitas, que serpenteavam em curvas constantes. Residências de dois ou três andares se elevavam dos dois lados da rua. Saltei para a calçada quando um carro vintage me buzinou. Carros, um tanto elegantes, eu admitia! Mas pouco tempo tinha para apreciá-los. As curvas da rua me faziam seguir em linha reta? Estaria eu, sendo enganado pela ilusão dos movimentos contínuos mas não precisos do caminho?

Das cores de elegantes vestes passei a ver uma em comum, conforme andava às pressas. Era um preto e um amarelo de um uniforme que eu ignorei por muito. Mas repetia-se a cada travessa e cruzamento. Eu supunha que estávamos a nos aproximar de uma área residencial, pois o movimento era pouco mas o preto e amarelo, constantes. Foi quando me vi junto à Anne, parado. Cortei os meus passos, silenciados pelo par das minhas velhas botas. Os homens de uniformes preto e amarelo, com seus capacetes cônicos de metal reluzente sob o sol. Tinham o emblema do reino costurados na altura do peito do uniforme, o coração de asas, mas não me demorei nesse detalhe. Eles nos apontavam lanças e ameaçavam com olhares hostis.

Meus berros irromperam súbitos, embora minha voz rouca, mas trovejavam, relampeavam, expunham meu ódio e desgosto por tais palavras.

- Que seres imundos, esses desprezíveis homens de autoridade! Desejo por suas vidas, marginais uniformizados, porque não vou poupar nenhum!

Eu me coloquei frente à Anne, e tinha um canivete em mãos.

Eu franzia o cenho, empunhando o canivete com as duas mãos e apontando a cada um deles, mas via que não adiantava. Abaixei o olhar, procurando por respostas nos paralelepípedos que pavimentavam as ruas. Ergui a cabeça e arregalei o olhar, com a pose de quem tem algo a revelar perante o desespero.

- Que ousadia a de vocês! Dirigindo suas palavras de intenções sujas para a princesa dos piratas do mar! Eu preferia que se curvassem diante dela. Acreditei que valorizavam suas vidas. Como pessoas civilizadas de Miskronie. Não vejo isso. - Abaixei o canivete, conforme notei o cessar de movimento dos guardas. - Imagino o que lhes fariam os piratas do mar, se soubessem...

Eu não contestei. Tive meu canivete roubado e meus braços rendidos, caminhando para onde dois guardas me guiavam, com as mãos nos meus braços e ombros. Abaixei a cabeça e esbocei sorriso. Iríamos ao palácio real!

Me adaptava à escuridão, para ver por através dela, o que estava a me rodear. Eu me encolhi em um canto da parede, reflexivo, encarando a comida e o copo de água suja. Sentia fome, sentia sede, mas não cederia ao lixo que nos ofereciam. Tratavam-nos feito ratos, ou coisas não-humanas. Eu não tinha o meu canivete. Eu não tinha nada nos bolsos da calça que não me pertencia, ou da blusa de linhas desbotadas. Só tinha a companhia silenciosa de Anne, e meus pensamentos altos porém mudos. Um homem batia a caneca nas barras da grade de uma cela ao lado, suplicando por água com uma voz arrastada e cansada, voz de alguém de idade avançada. Eu não desejava envelhecer com Anne naquela podridão. Não desejava ver meus sonhos tornando-se páginas pardas que esfarelariam sem o devido cuidado. Meus sonhos eram mais que rascunhos no papel para palidecerem ali. Rompeu-se o silêncio com o som de algo metálico a balançar. Um guarda real vinha pelo corredor, e parou diante da nossa cela. Ele apanhou o molho de chaves e enfiou uma delas na fechadura. Abriu-nos passagem para a liberdade. Eu pouco esperava por aquilo, mas reagi erguendo os olhos e apoiando uma mão no chão para me levantar, surpreso, e dar alguns passos adiante.

Eu estava imóvel, no centro do cômodo, estagnado pela surpresa. Troquei um olhar com Anne, oscilando entre a satisfação e o medo. Que poderia ser? Poderíamos confiar? Me voltei para o guarda, engoli em seco e dei alguns passos na sua direção. Meus planos não envolviam escapar do palácio real. Eu precisava contactar o rei! E seria mesmo verdade as palavras daquele homem? Que conexão teríamos com a princesa, a dita mais bela moça do reino, mas que eu nunca vira sequer de relance? Fui acompanhar o homem, com naturalidade nos meus passos, embora meu espírito tremesse de excitação dentro do casulo que era o meu corpo. O corredor fazia uma curva e cruzava com outros demais corredores, com outras celas. Ao fim do percurso, uma passagem com um arco para uma escada de pedra que subia em espiral. Quando nos aproximávamos dos primeiros degraus, apanhei um pedaço de pau anteriormente encostado à parede e, exigindo força minha, bati-o contra a nuca do guarda, levando-o inconsciente ao chão. Ainda segurando firme a madeira, corri para as escadas e tratei de subi-las, com tamanha pressa que fazia-me saltar alguns degraus. O fim da escadaria levava à uma porta de madeira fechada, que eu empurrei cauteloso para encarar a luz artificial dos lustres pendurados ao teto de um largo corredor. Guardas que patrulhavam já nos lançavam olhares desconfiados. Eu era um animal irracional agora, correndo para eles e acertando-os com a madeira, manchando o tapete vermelho de um vermelho ainda mais intenso.

Dois guardas vinham, conforme eu derrubava outros. Eles tinham suas lanças e espadas, e as empunhavam bem. Eu nunca soubera batalhar, mas quando menor gostava de batalhar contra Anne usando gravetos. Eu me movia sob a pressão do desespero, saltando de forma quase desastrosa para não ser pego. Eu só precisava atingir a cabeça dos guardas, desacordá-los! Retomando, dois guardas vinham e eu abaixei-me, correndo agachado enquanto os dois trombavam um contra o outro, acidentalmente. Corri, puxando um pouco do tapete conforme eu movia meus pés desesperados, e lancei um olhar à Anne. Ela teria de me seguir. Adentrei um outro corredor de paredes cor-de-creme. Uma curta escadaria. Uma dobra ao fim do corredor. Eu evitava os guardas e empregados reais ao máximo, e eles geralmente não nos seguiam devido a escassa compreensão que tinham da situação. Encontrei um corredor diferente, de teto alto e com vários arcos ao seu decorrer. No fim havia uma luz, mas encontrei mais guardas pelo caminho e não pude me concentrar em alcançá-la.