☄ Angieses

O Expresso Lyrio cortava os esbranquiçados campos, deslizava sobre o ferro dos trilhos, expelia sua fumaça como rastro do seu percurso. Estávamos no último vagão. Girei a maçaneta da porta do fundo e puxei-a. Uma pequena "sacada" ou algo que eu não pude definir, exclusivo do último vagão, estava diante de mim. Dei um passo para fora, para a pequena área, e observei os trilhos correndo, ou seríamos nós? Combinara com Anne que saltaríamos quando o expresso cruzasse os campos, devido a inexistência de uma estação ferroviária por essas terras. Cumpri o combinado, saltando e cambaleando perto do trilho, até me recompor sentado para checar meus joelhos. Nos campos de Angieses, eu era um garoto de calças novas e um sobretudo aberto sobre o tronco nu. Não havia uma camisa, mas não era problema.

Levantei-me e fui acompanhar à minha amiga, Anne, lançando um último olhar ao trem que se afastava e cuja fumaça se dissipava no ar frio. Cruzei os braços, encarando aos meus próprios pés conforme andava sobre a trilha margeada por plantações altas, como muros.

- E que há se eu não usar? Que assim, como vantagem, não me confundam mais com uma garota...

O propósito não era esse, e eu sabia. Mas ao analisar a situação, essa conclusão parecia-me plausível e energizava a ideia da não necessidade de uma camisa, por enquanto...

Ergui meus olhos para o céu infestado dos algodões, as nuvens. Tão aglomeradas, escondendo o sol ou a lua que logo viria, ao julgar o cinza pálido que escurecia naquele ambiente estranho... Lancei à Anne um olhar canteiro e tratei de responder, com falas pausadas.

- São eles, os tais famosos historiadores, os Manson's... Um fazendeiro poderia nos indicar a direção. Para a qual seguir, para até eles.

Dançava a minha voz rouca, embriagada por um tom sonhador, mas melancólico. Em contraste ao cenário rústico da metade de uma torre, o que restara dela, logo à esquerda, cheia de musgo e mata alta.

Acompanhei-a com o olhar e obedeci, fielmente, ao pedido, dirigindo-me à torre. As paredes eram escorregadias devido ao musgo, concluía eu. Não seria uma escalada segura. O mato alto roçava minhas pernas, mesmo que cobertas pela calça. Encontrei um arco do que fora a entrada e espiei a escuridão do interior da torre.

- Uma escada! - Eu disse, apontando para as ruínas de uma, com alguns degraus despedaçados. - Que me parece segura...

Meu corpo estava encostado ao arco, largado, enquanto eu cruzava os braços e meus olhos passeavam sobre os degraus. Qualquer que fosse minha resposta, pareceria a decisão errada aos olhos de Anne.

- Suba, que eu fique aqui para socorrer caso falhe.

Atiçava-a, desafiava-a, com um falso descaso na voz, pois era de determinação que ela precisava. Uma dose de confiança e coragem, para provar-me algo.

- Peço que perdoe-me, mas ficarei!

Respondi em voz alta, que ecoou dentre as paredes da torre. Retornei à trilha, tomando distância da torre para avistar Anne melhor. Mas o que eu pouco esperava era a presença de um garotinho, talvez com os seus sete anos de idade, de pele pálida como a de um defunto, e olhos fundos envoltos por olheiras tão fortes quanto às minhas. Por pouco não tropecei nele quando afastava-me da torre, andando de costas. Virei-me e o olhei. Seus lábios cortados estavam selados, ele estava quieto e me encarava com o par de olhos estranhos.

- ... Menino. Saberia para que lado vivem os Manson?

Ele apontara, sem hesitar, na direção da plantação às suas costas, mas nada eu podia ver através. Dei as costas à criança e berrei para Anne.

- Que vê na direção que o menino aponta?

Era informação o bastante, para fazer do garoto, confiável. Um casebre, sim, deveria ser lá! Virei-me para o garoto a fim de agradecer, mas só vi o seu vulto se enfiando por entre a plantação e desaparecendo. O menino estranho fugira, o que me intrigou. Franzi o cenho, e olhei para a torre por cima do ombro.

- Seguiremos para o tal lugar.

E afastei dois pés de arroz, ou seria milho? Para adentrar a plantação. Eu empurrava os vegetais que iam contra mim, tentando seguir sempre em linha reta, para até o casebre. Eu estava ofegante em busca de ar, quando removi mais um pé-de-algo do caminho e encontrei uma vasta área de jardinagem aparentemente abandonada rodeando o que me parecia uma rústica mansão. Uma luz fraca irradiava de uma grande janela, que eu julgava ser do primeiro cômodo do casarão. Fui lento, receoso, até os degraus que me levariam à porta.

Quando Anne alcançou-me, tremeu o meu corpo em um breve susto. O súbito me fascinava, mas a presença repentina dela diante do casarão em contraste com uma das noites mais negras que eu poderia presenciar, não me era tão interessante. Olhei-a, e fingi que sentia frio, abraçando a mim mesmo após o susto e seguindo, mudo por uma incerteza e um medo, conforme eu dava os primeiros passos sobre os degraus, para até a varanda e consequentemente à porta grossa de madeira. Parei diante dessa última. Pois meu coração pulsava acelerado e caía em um vazio. Afinal, que esperar quando eu abrisse aquela porta? Que veríamos? Os Manson seriam bons hóspedes? Seriam eles, amigáveis conosco? Engoli em seco e encostei a mão sobre a porta. Era mais terrível que rasgar o céu e encontrar um outro mundo, pois dessa vez era intencional e eu não nutria boas expectativas. Empurrei lentamente a porta. Saltaram três pôneis malditos alegres e nos convidaram para tomar chá. Dei um primeiro passo para dentro da mansão, através da fresta que eu abrira. Uma ampla sala, com tapeçarias antigas e empoeiradas forrando as tábuas, paredes com papel de parede camurça, sofás e poltronas de estofados vinho, frente à lareira acesa que a tudo isso e mais, iluminava. Mas não havia uma pessoa sequer naquela mansão.

Eu caminhava com a cautela de um anjo, aqueles seres lendários citados em um livro que um dia eu lera. O tapete era macio aos meus passos. Uma mesta de centro continha um castiçal de velas apagadas, que eu apanhei e acendi com o fogo da lareira. Quem teria acendido-a, se não havia sinais de moradores? O menino mentira para nós? Empunhando o castiçal, fui buscando por outras velas. Encontrei uma sobre um piano de cauda e a acendi. Outra estava numa mesa de canto. Na parede, uma placa de bronze dizia "Família Manson". O menino, para a minha infelicidade, não nos enganara... Havia uma escadaria ao fundo da sala, e uma passagem para outro cômodo escuro. Olhei para Anne, com um olhar de dúvida que eu a lançava quando não sabia o que fazer, ou o que esperar. Minhas sobrancelhas arqueavam, meus olhos suplicavam por respostas. Aquilo era amedrontador, perturbador, confuso! Que a princesa Olga queria que encontrássemos?

Eu assenti, lento, e encarei a escada de madeira. Subi-a a passos lentos, para até o segundo andar da mansão. Estaríamos, agora, no meio de algum corredor cheio de quadros nos quais deveriam haver rostos, pois haviam nomes sob cada um deles. Mas estavam vazios. Estranhamente, vazios. Eu estendia o castiçal frente ao meu corpo, para enxergar melhor o que viria a seguir. Com a outra mão livre, eu apalpava as paredes, como que em busca da segurança. Várias portas fechadas repetiam-se ao longo do percurso.

- Que há de errado? Teria a tal família, abandonado a moradia? - Eu soava ingênuo. Eu nunca soube sobre o mistério da família Manson. Nunca. - Anne, terá de perdoar a minha absurda decisão. Passaremos a noite aqui. Que o amanhecer faça desse lugar mais simpático, para explorarmos.

Disse eu, parando ao lado de uma porta e virando-me para trás.

Eu descansei a mão sobre a maçaneta da porta, olhando-a com o castiçal mais baixo. A cera das velas escorriam um pouco e queimavam os meus dedos, mas fosse qualquer dor a ferir, meu coração não sentia, absorto no medo! Eu abaixei o olhar, infeliz.

- E que mais poderíamos? A noite é terrível nesses campos. Como aqui. Fiquemos aqui.

Girei a maçaneta e coloquei o castiçal à minha frente quando adentrei o quarto. Eu empunhava-o como um escudo protetor, a única luz da penumbra. Um quarto mediano, com móveis empoeirados, guarda-roupa, tapetes, um gabinete, uma cama larga e bem arrumada. Depositei o castiçal sobre um gabinete e fiquei a passear com o olhar ao redor.

- Fique com a cama. Fico com o tapete...

Eu esbocei um sorriso, e quase me escapara um risinho em um momento tão sutil quanto àquele. A atitude de Anne me alegrara um pouco. Ela tinha um semblante de durona, mas seria mesmo? Fechei a porta, girei a chave para trancá-la e fui deitar-me na cama. Macia.

- Durma bem.

Primeiramente pensei em manter-me acordado, por medo do que viria a ocorrer caso eu fechasse os olhos. Mas quando a luz da vela se extinguisse, e a escuridão viesse, eu não gostaria de estar consciente. Levantei-me, breve, e puxei uma das cobertas que forravam a cama e carinhosamente cobri Anne, mesmo que ela me odiasse por isso. Retornei à cama e deitei-me, definitivamente fechando os olhos.

Era manhã quando os primeiros raios de sol atravessaram a janela de vidros partidos ou trincados, e tingiu-me com uma luz dourada. Eu, enrolado às minhas cobertas, sobre a cama, abri meus olhos para encarar as primeiras horas do alvorecer. Conforme meu olhar passeava sobre o quarto iluminado, minha mente trabalhava nas minhas lembranças, para então tornar-me consciente de onde eu estava. A mansão abandonada dos Manson, muito mais simpática sob a luz do sol, eu diria. Coloquei meus pés para fora da cama e levantei-me, passando as mãos nos cabelos embaraçados. Meus olhos ardiam um pouco. As velas do candelabro se apagaram há tempos. Espiei Anne no tapete, em silêncio. Fui para o parapeito da janela onde me apoiei e apreciei os campos de Angieses e os jardins abandonados. O lugar ainda era melancólico, cinza, nublado, mas uma fraca luz sobre as nuvens que certamente era o sol, conseguia enviar-nos um pouco da sua essência.