☄ Angieses

Parei de desenhar minhas palavras, com uma letra cheia de curvas e pernas que, eu torcia, pudesse ser decifrada pela editora. Que eles diriam ou pensariam quando lessem tal coisa, assinada por um Manson imaginário. Estava eu a pensar nas próximas palavras, mas escapava-me a coerência e o foco, pois eu tinha fome e cansaço. Mais cedo estive na cozinha, mas como eu imaginara, só havia armários vazios. Nunca vivera ninguém ali. E se os Manson's existissem, teriam partido para algum outro lugar e abandonado a mansão. Por qual motivo? Levantei os olhos para Anne, a menina deitada na cama.

- Não gosto de estar imundo. Vou procurar por um banheiro... Quero me banhar.

Levantei-me do chão, depositando papel e pena sobre um gabinete.

- Se desejar, escreva.

A pergunta dela me fez parar, tamborilando os dedos na madeira do gabinete, de cabeça baixa, procurando por alguma resposta na poeira dançante do quarto. Balancei a cabeça negativamente, que significava dúvida.

- Desejo que sim. Mas que sugere, um lago?

Eu olhei-a, expressando dúvida. Girei a maçaneta da porta e saí para o corredor. Espiei uma porta diferente mais à esquerda do quarto. Fui até ela e abri-a, com dificuldade porque emperrava. Um banheiro, sim, com azulejos ilustrados por flores, uma banheira ao fundo, espelhos, uma pia... Girei a torneira. Uma água decente, eu poderia dizer. Fechei a porta.

Eu voltei, de cabelos ainda um pouco molhados, mas felizmente limpo. Adentrei o quarto e olhei da pedra para a janela onde Anne estava, arqueando uma sobrancelha em dúvida.

- Mas que há?

Intrigado, fui espiar pela janela, mas o marasmo era aquele mesmo. Cinza, com algumas fazendas espalhadas, e montes no horizonte. Expirei, decepcionado. Sentei-me na cama, comportado, afastando alguns fios dos olhos pois atrapalhavam a minha visão. Fiquei contemplando Anne, absorto. Eu achava-a bonita. Estava refletido nas esmeraldas verdes, os meus olhos. Mas que ideia a minha, ficar apreciando-a quando precisava escrever...

Eu iria contestá-la, mas vi-a sair às pressas por aquela porta e corri atrás dela, tentando levantar a voz para avisá-la que não deveria fazer tal coisa. O tapete fazia dobras e ondas conforme corríamos sobre ele, deslocando-o. Deslizei as mãos sobre o corrimão quando estava a descer a escada. Mas que raios ela pretendia? Uma vez lá fora, sob uma tarde que morria para logo dar lugar à estrelas de ouro e lua parda, segui-a pela plantação, aos tropeços, e pouco enxergando. Me arranhando e cortando com o emaranhado de folhas, plantas, espinhos. Gritei por Anne conforme eu seguia, mas de nada adiantara.

Não pude pensar em como reagir. A presença do menino era assombrosa, e seu cão de estimação não me parecia nenhum animal apreciável que se pudesse acariciar. Puxei Anne pelo braço, súbito, para tentar desviar do cão. Que faríamos, agora?

Me tiraram o canivete que eu tinha quando fora preso. O cão avançou-me mais uma vez e eu caí sentado no lago raso, aos pés de um garoto que levemente afastou-se, sem modificar a postura ou expressão. Eu espiei-o por cima do ombro, de relance, porque o cão viria ao meu encontro. Me empurrou com suas patas e aproximou o focinho do meu rosto, conforme eu ia me inclinando e molhando a nuca no lago gelado. Empurrei-o com o pé e tentei me levantar, no desespero.

Me levantei e fui até Anne. Me ajoelhei perante à ela e observei a sua perna. Peguei um pouco da água do lago e molhei o ferimento, limpei o sangue. Olhei ao redor, mas nada podia ver muito naquele breu. Que pesadelo fora aquilo? Com o cenho franzido de força, arrancei um pedaço do meu sobretudo e usei para estacar o sangue dela, amarrando-o ao redor do ferimento. Um curativo temporário. Olhei para ela, minha amiga orgulhosa que poderia não aprovar a minha ajuda, mas eu não me importaria. Eu desejava que ela estivesse bem.

Rumei com ela, segurando o braço que sangrava um pouco. O desatar da dor é maior que a dor em si, eu pensava. Bastava ignorá-la... Eu pensava em como Anne era orgulhosa e parecia sempre dispensar a minha ajuda. Seria mesmo assim, no fundo? Eram alguns minutos para até o quarto, onde tratei de ascender as velas de um candelabro com fósforos que eu encontrara nas gavetas, em uma das noites passadas. Apanhei o rascunho do livro, sem muito mais o que escrever por aquele dia. Sentei-me na cama, com aquele ar melancólico nos olhos, refletindo. Sobre o menino estranho e seu cão, sobre Anne... Com o queixo apoiado na mão direita, e olhos baixos.

Deixei a pose reflexiva e espiei-a, com as sobrancelhas erguidas. Respondi com uma serenidade sem igual.

- Não quero. Não mais, por hoje. Que a noite nos dê descanso. - Fiquei quieto, e olhei para a janela, pensativo. Minhas palavras vinham lentas, agora. - Anne... Perdoe-me. Por te envolver nos meus sonhos malucos. Alcançar ao pôr do sol... Eu não desejava o pôr do sol. Não desejava uma insanidade. Só desejava estar com você...

A luz de início de tarde infiltrava-se pelas janelas altas e o vitral da biblioteca. Eu assinava um papel em branco que representava a capa do livro. Intitulei-o de "Por debaixo dos panos" e assinei como um inventado "Angelo Manson", nome esse que seria proferido por todas as línguas do reino, como referência ao tão polêmico livro. Alinhei as folhas sobre a mesa e coloquei-as dentro de um envelope pardo, onde eu já endereçara o destino em uma etiqueta. Levantei da mesa e fui até os canos de correio fixados à parede. Cada passo aproximava-me de um futuro conturbado e duvidoso. Bastaria a publicação, e eu sabia, Lyrienso mudaria, para sempre. Consequentemente, as mudanças radicariam minha vida. E pensar que eu desejara ser um pirata... Inseri o envelope no cano de envio, e ele foi sugado para então encontrar a editora. Fiquei parado perante o par de canos de bronze. Eu contemplava a decisão mais perigosa que eu já tomara.