Cecille

**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 17:42

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E os olhos de Cecille iam ficando cada vez mais... Vazios. Não queria sentir nada, não queria sentir esperanças. Nem raiva. -:-:- Aloysius nunca foi meu amigo... Amigos não machucam parte de sua alma, mesmo sabendo o quanto ela lhe é importante. E de fato, meu Mestre não me abandonou. Pois Moros jamais abandona um servo que lhe é fiel. E ele também não me foi arrancado, Alteza, acho que a senhorita está um pouco confusa. -:-:- E deu um sorriso afetado, como o de muitas bonecas que são vendidas à menininhas. Ouviu a pergunta e suspirou. -:-:- Não estou me opondo a meu Mestre. Nem a meu amigo, tendo em vista que ele nunca foi meu amigo... Mas me oponho a Aloysius, sim. Tu não compreendes, o quão importante é o Céu. Devias apreciar sua beleza. Eu o amo, Alteza, amo o Céu, e quando este é ferido me dói. Imagino, que seja equivalente à morte de seu pai, que Moros o proteja disso e lhe dê vida longa e saudável. -:-:- Aquela conversa deixava a boneca cansada, triste. Ninguém jamais compreenderia, e a solidão machuca. Sentia falta de todos aqueles que foram bondosos com ela, mas não queria vê-los. Sabia que a dor ao ver a incompreensão nos olhos daqueles que amava era mais doloroso que a saudade. E mais insuportável que a princesa.

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**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 17:42

"A ingenuidade persistente da boneca, não afetava a princesa. Essa, absorta no seu mar de tranquilidade, de águas compostas por salgadas lágrimas seculares, não reprimia as mentiras de Cecille. Não lhe era necessário. Uma vez que a princesa conhecia a verdade, e estava ciente de que a boneca também a conhecia.

- Eu compreendo os seus valores pessoais, Cecille. Em um dia não tão distante, haverá de compreender os meus valores pessoais, também. O que eu quero de você, é paciência e tolerância.

Ela deu um último sorriso entre os lábios. Um sorriso não tão contente. A princesa nunca estava contente. Atravessou a porta escancarada e seguiu pelos corredores, para recolher-se em seus aposentos. Reunida à sua misteriosa tristeza."

**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 17:43

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Ouviu as palavras da princesa, mas não ouviu. Seu pensamento estava distante dali, mas notou quando a princesa foi embora. E fez o mesmo, se esconderia em seu quarto. Era cansativo fingir obedecer a um deus que odiava. Era doloroso aquele sentimento de abandono que sempre a acompanhava. E aquele pensamento que jamais sairia de sua cabeça: Porque sou uma boneca, então tenho que ser abandonada. Imaginava um baú de brinquedos de uma criança. Todo brinquedo um dia entraria naquele baú e a boneca se deitaria em sua cama. Era um briquedo, nada mais que isso. E esse pensamento a atormentava, pois ela nunca poderia dormir, não tinha como fugir. Não podia chorar, não podia aliviar a dor. E pela primeira vez a boneca sentiu que, depois de tantos anos, talvez estivesse morrendo.

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FIM

**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:11

ATO NÚMERO 40

"Nas entranhas da montanha, na qual o palácio real estava incrustado feito o rubi d'uma coroa, estavam os corredores subterrâneos da prisão real. Lá apodreciam os seres mais perigosos aos olhos dos monarcas. Ou um mero homem, de idade mediana, cujos cabelos curtos estavam despenteados e a barba, descuidada. No canto da sua cela, Durwart Manson assistia à própria solidão, com os óculos tortos no rosto, amplificando a visão das sombras produzidas pelas chamas, das tochas postas ao longo do corredor em curva. Na atmosfera fétida e doentia do lugar, o homem aguardava pelo dia em que veria a luz do sol uma última vez. O dia em que teria sua cabeça a rolar na praça pública da cidade, por um crime que não cometera. Ao menos, não da forma como julgavam."

**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:11

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Pobre Cecille! Tão infeliz, já nem estava tão vaidosa, algo trágico para uma boneca. Caminhava com passadas leves pelos corredores subterrâneos, soubera há algum tempo que aqueles corredores abrigavam algo que talvez a animasse. Talvez um amigo, como poderia dizer? Mas sentia pena do homem, mais do que de si mesma. Algo tão incomum para uma boneca. E lá estava ele, numa aparência tão infeliz quanto a dela. -:-:- Sr. Manson? -:-:- Perguntou, para ter certeza. Pobre Sr. Manson! Pobre Cecille.

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**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:12

"O homem, antes cabisbaixo, agora erguia a cabeça para ajeitar os óculos, com as pontas trêmulas de seus finos dedos, e certificar-se da figura cheia da graça feminina, que do outro lado das grades estava a chamá-lo. Sorriu, entusiasmado, e com voracidade levantou-se e em três longos passos já estava a centímetros das barras de ferro, com as duas mãos segurando firmes nas mesmas.

- Sim, querida? A que devo a visita de tão graciosa presença? Um mandato de soltura, eu suponho? Por favor, diga-me que sim!

Tremulava a voz do homem, desesperado."

**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:13

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Que susto levara! Dera dois passos para trás, mas logo a piedade voltara e a vaidade também. Olhou por um longo momento para o homem, pensando no que dizer, embora quisesse confirmar as palavras do coitado. Mas não podia, não era verdade. -:-:- Na verdade... Só vim visitá-lo, sinto muito... Mas imagino que logo será solto, dei a localização de Aloy para que ele seja preso e não torne a rasgar o Céu. -:-:- Disse em tom triste e cansado, mas se obrigou a dar um breve sorriso, queria que ele tivesse esperanças, mesmo quando ela mesma já não as possuía. -:-:- É só uma questão de tempo, e posso tentar pedir ao Rei para soltá-lo, mas acredito que ele só o soltaria quando estivesse com Aloy, sinto muito... Se for de algum consolo, se quiser posso te fazer companhia, me sinto sozinha, também... Procuro um amigo. -:-:- E parou, para encarar o chão, sentia a vaidade indo embora novamente e aquele peso voltando.

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**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:14

"Na pouca sanidade que lhe restava, Durwart puxou o sentimento de compreensão para com a boneca, embora seu sorriso desfarelasse junto às esperanças contidas no seu coração. As mãos deslizaram pelas barras de ferro e as soltaram. Então ele recuou dois passos, encarando aos próprios pés.

- Compreendo... - Voltou a observar a boneca, iluminada pela pouca luz das chamas dançantes. Mal conseguia notar a pele de pano da garota. Esboçou um sorriso. - Pois bem, minha querida. Unamos nossa solidão, até que se dissipe. Sejamos amigos, mas conte-me, por favor. O seu nome?"

**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:15

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A boneca deu um breve sorriso e tornou a se aproximar, pelo menos ele aceitara ser seu amigo e isso deixou a boneca satisfeita. -:-:- Cecille. -:-:- Cecille Sem Sobrenome, ela sempre pensava, mas para que uma boneca que era única no mundo precisaria de um sobrenome? E aquela pergunta, pois era muito curiosa e precisava saber. -:-:- Senhor, a amizade traz felicidade? -:-:- Olhava para o homem cheia de expectativas, o que ele responderia? Os livros sempre diziam que a amizade era importante, mas... Seria apenas para humanos? Talvez ser a única boneca vivente significasse que aquela era uma palavra que não poderia usar, mas onde poderia encontrar alegria na solidão?

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**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:16

"Mais uma vez ajeitando os óculos, tendo uma das lentes rachada ao meio, contemplou a figura imaginária que a pergunta lhe produzia na mente, e deixou escapar um risinho. Assentiu.

- Mas é claro, pois, veja. Quando se tem afeição por alguém, o alguém que chamamos de amigo, se tem com quem compartilhar os bons momentos de sua vida. E os maus. Compreende? Com um amigo confiável, você ri, você chora... Sente-se bem. É parte de uma convivência sadia dentro de toda e qualquer sociedade.

Durwart tinha lampejos dos tantos livros que escrevera dentro de duzentos anos. Seus olhos brilhavam a cada palavra declarada com o vigor e o orgulho de um homem que se vê como sábio. Isso estava estampado nos seus gestos durante suas falas: uma mão para trás, a outra com o dedo indicador apontando para o teto e balançando em sincronia às suas palavras."

**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:17

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Começara a sentir-se melhor com as palavras do homem, mas não durou muito. -:-:- Mas, senhor, bonecas não podem chorar... Embora eu queira, é como se alguma coisa estivesse presa dentro de mim, mas não pode sair. Invejo isso nos humanos. -:-:- Murmurara a última frase, pensativa. Se amizade não iria evitar que sentisse vontade de chorar, que poderia fazer? Odiava aquela sensação, talvez até odiasse ser uma boneca, no final das contas. -:-:- Achei que tinha amigos, mas... Querem rasgar o Céu, não entendem que isso machuca... E agora, tenho medo de não conseguir mais entender... Imagino que eu seja a pior boneca do mundo, mas isso é fácil, também sou única... Penso que o Céu tem vergonha de mim.

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**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:18

"O homem demorou-se a digerir as palavras que lhe eram dirigidas. 'Boneca', ele pensava, mirando agora cada detalhe de Cecille com os olhos. E na sua memória de dois séculos, vinham-lhe lembranças adormecidas no mar da consciência. Ele recuou um pouco, com uma mão levada à testa fria. Sentou-se no banco de madeira podre encostado à parede. Deslizou os dedos pelos finos fios de cabelo que lhe ocupavam a cabeça, com o olhar perdido na escuridão do chão cinza. Pousou os olhos sobre a boneca e, em palavras lentas, recomeçou a falar.

- Cecille... Pois é claro. Cecille, a boneca de pano. A obra prima do velho Armstrong! Um velho amigo meu, pois veja, tanto eu quanto ele possuímos vida eterna... Mil perdões, querida! Não reconheci a sua condição de boneca de pano. - Ele fez uma pausa, coçando a cabeça e ajeitando os óculos, um pouco sem foco. - Armstrong me contava muito sobre você. Ora, ele a tinha como uma adorável filha, entende? Creio que entenda..."

**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:19

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Estranhou ligeiramente a reação do homem, mas então notou, estava escuro, talvez ele não tivesse reparado... Um breve sorriso surgiu no rosto da boneca, achara aquilo engraçado, mas ele logo desapareceu, deu um passo para trás, mas acabou caindo no chão. -:-:- Não. -:-:- Arfou enquanto tentava se sentar. -:-:- Não sou criação dele, ele não é meu Mestre. Não, agora o Céu é, porque ele nunca me abandonou... -:-:- E aquele peso novamente, aquela vontade de chorar, aquele sentimento de que talvez estivesse morrendo. -:-:- Mesmo quando perdi perna, depois braço, mesmo quando perdi um olho e o outro ficou pendurado, mesmo quando fiquei desbotada e pavorosa, ele estava lá, olhando por mim. Pois ele é de pano, e ele consegue me entender... Ele nunca me deixou sozinha... -:-:- Falava com dificuldade, os olhos fechados. Imaginava lágrimas molhando seu rosto, levando um pouco da dor. -:-:- Eu nunca tive que procurá-lo por anos e anos, porque eu sempre soube... Eu sempre soube onde poderia encontrá-lo. E ele foi machucado... Rasgaram o Céu porque ele é de pano... Somos feitos para sermos machucados por humanos... -:-:- E mais lágrimas. Mas elas não estavam ali de verdade, nunca estariam, porque pano não se molha sozinho.

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**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:20

"E as palavras sintonizadas à emoção que a boneca sentia, fizeram o homem sentir por ela. Fizeram o homem entender o quão doloroso deveria ser, suportar uma dor que nunca se desmancharia em lágrimas. Uma dor que nunca se esvairia do corpo por meio da rendição ao choro. E ao imaginar, Durwart quis chorar, mas engoliu em seco para não fazer a pobre Cecille, sofrer mais.

- Minha querida... Por favor, não sinta-se triste. Não sinta-se só. Estou com você, Cecille. Não sinta-se rejeitada. Saiba, Cecille, que o professor Armstrong lhe amava de todo o coração. Estou certo de que ele não lhe abandonou."

**Administrador** Sex 03 Fev 2012, 18:21

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Levantou-se e encarou o homem, estaria ele sendo honesto ou ingênuo? A segunda opção era mais provável. -:-:- Foi egoísmo da parte dele, criar algo que não é capaz de chorar. -:-:- Olhou para as mãos de pano, pensando nos longos anos, no longo sofrimento, nas lágrimas ausentes. Sim, ele fora egoísta ao criá-la para poder saciar sua própria solidão. E quanto a solidão dela? -:-:- Eu devo ir agora, mas voltarei, não se preocupe. -:-:- E então se afastou, voltaria para seu quarto, queria ver o Céu, conversar com ele... Porque talvez ele fosse seu único amigo de verdade, e como era triste ter um amigo mudo quando se é uma boneca dependente de respostas.

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FIM

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