☄ Miskronie

"O sol se espremia através dos grossos vidros das janelas altas, e teciam a vivacidade da cor vermelha, do tapete que forrava a sala do trono. Era o meio de uma monótona tarde. Em seu palácio, a família real recebia aquele dito como o autor do polêmico livro "Por debaixo dos panos". A família real conhecia o segredo dos Manson, e o secreto autor por detrás de todos os famosos livros que publicara. Durwart Manson fora acompanhado por dois hostis guardas, que lhe seguravam os braços com força. Durwart, o homem de gostos requintados, mais parecia um trapo surrado de expressão triste, no rosto pálido emoldurado por um cabelo despenteado. Ele caminhava conforme os guardas o levavam para até diante do trono. E sob a luz infiltrada por uma das janelas, ele fora largado aos pés dos três tronos, todos ocupados. Os demais guardas encostados às paredes, indiferentes.

O rei e a rainha julgavam o homem com seus olhares severos, suas sobrancelhas arqueadas. Suas belezas angelicais, de hostilidade e superioridade iguais. O rei, lentamente, ergueu o livro de capa azul, para que Durwart erguesse a cabeça e revelasse o seu temor diante daquela blasfêmia literária, que ele nunca escrevera.

- Majestade! Por favor, deve acreditar em mim! - Começava, com o desespero tomando conta de seu pulsar rápido no peito. - O senhor deve! Pois veja só, sou leal à monarquia há séculos! Eu suplico que enxergue a verdade, senhor! Não sou eu, o autor desse blefe!"

"- É vergonhosa a sua súplica, Durwart! Por Moros, ordeno que pare! - Surpreendeu o rei, com sua invejável voz de trovão, impondo respeito. - Reconhecemos a sua inocência. Mas concordemos que fora uma irresponsabilidade imensa a sua, deixar a mansão durante uma semana sem um devido cuidado...

- Pois saiba, majestade... - Interrompeu Durwart, com uma leveza no peito que fazia da sua voz, fluir menos trêmula. - Eu concedi à mansão, a proteção de um guardião. Uma lástima ele ter falhado...

- Uma lástima. - O rei sorriu de canto. Sorriso estranho. - Talvez, Durwart. Mas essa criança de dez anos, uma qualquer da região de Angieses, que você hipnotizara para prestar serviços como guardião, foi de extrema importância para nós. - E seus olhos brilhavam de excitação. - A criança nos revelou que enfrentara dois invasores. Os possíveis responsáveis pela autoria do livro.

- Sim, senhor. - E o homem ajeitou os óculos.

- Conte-nos... - E o rei apoiou as mãos nos braços do seu trono dourado para se inclinar para frente, como um juiz diante do réu. - Como eram, os invasores?"

"Durwart Manson suou frio. Seus olhos inquietos buscavam por algum ponto onde pudessem repousar, mas ter os olhos do rei sobre sua cabeça não lhe permitia que se inquietasse facilmente. Ajeitou os óculos duas vezes e passou as mãos sobre os cabelos molhados de suor. Intimidado, de joelhos, ele lançava um olhar desesperado para a princesa Olga. A pequena, com sua expressão solene, só demonstrava indiferença diante da situação. Olga e Durwart haviam ajudado Aloysius e Anne a encontrar as ferramentas certas para escrever o livro. Eram cúmplices de um mesmo crime. Mas Olga o abandonava, só. Durwart voltou-se para o rei. Tomara uma decisão. Se Olga o abandonaria, ele abandonaria os planos que um dia tiveram juntos. Ele descrevera Aloysius como "um adolescente dos cabelos longos, castanhos, olhos verdes, vestindo roupas surradas pelo tempo." Anne, ele via como "uma adolescente alta, cabelos negros, corpo definido e com vestes típicas de uma pirata do mar". Arrancara um sorriso de satisfação do rei, que se acomodou no estofado do trono.

- Que Moros tome conta do seu destino, Durwart. - Falava o rei, com um semblante de bondade que logo se desfez, na velocidade com que sopram os ventos. - Contudo, Moros lhe reservou um fim cruel, eu receio... A guilhotina, em praça pública.

- Majestade! - Berrou o homem, desesperado. Ele se levanto aos tropeços, e os guardas logo se adiantaram para deter seus movimentos. De pé, com os braços colocados para trás, ele ofegava de desespero. Seus óculos, tortos no rosto. - Reconhece a minha inocência, pois então, deixe-me livre!

O rei suspirou, pesaroso. Balançou a cabeça negativamente.

- Mil perdões, Durwart. Seus serviços foram de extrema utilidade ao reino. Agradeço em nome de Lyrienso, e de Moros. Mas o livro do blefe possui uma falsa assinatura sua. - E ele pegava o livro do colo, lendo o nome "Angelo Manson" na contra-capa. - Atendendo ao senso de justiça do povo, alguma cabeça deve rolar. De imediato."

"Rei Balthos repousava como um valente leão em seu trono. Um braço repousava, elegante, sobre o encosto. O outro estava erguido, enquanto sua mão acariciava a barba dourada e bem podada. Um olhar introspectivo ele mantinha sobre uma das folhas da porta que se elevava para até perto do teto, onde um engenhoso artista pintara a história da realeza com suas cores vibrantes, que brilhavam sob os últimos raios de sol infiltrados pelas janelas laterais. Lá fora o dia morria, conforme o céu girava. Princesa Olga estava tensa, atenta aos passos que vinham do corredor antecedente à sala do trono. Mordia os lábios por um nervosismo que ninguém compreenderia. Aquela dita a mais bela das moças, também era dita a mais misteriosa. Uma das pesadas folhas da porta, se moveu. Vinham os guardas com uma boneca de pano. Acendeu os olhos azuis do rei, que abaixou a mão e lançou um olhar intrigado e curioso para a figura miúda."

"O homem louro instigado, arqueava sua clara sobrancelha e transmitia à boneca, seu ar de incompreensão. Quando levantou o queixo, foi para permitir ao vozeirão, ecoar pela sala comprida e transbordar pelas janelas.

- É com um prazer imenso correndo por essas velhas veias, que te respondo, sim. Posso eu, até mesmo, recorrer à uma antiga e já esquecida frase... "O rei há de se ajoelhar, apenas, diante da divindade". Moros. - E embora sua voz fosse forte, seu tom nunca era agressivo. Portava uma segurança e um vigor vibrantes, de um coração generoso e valente. - Mas responda-me. O que é você? Por que veio até mim?"

"A tudo ele escutou, mantendo a dureza de suas linhas de expressão. Como que esculpido em gesso, um belo homem atado às suas responsabilidades, tentava usufruir de algo das palavras da boneca de pano. Aquela figura surreal fazia-lhe desconfiado, pois nunca vira ser tão complexo antes. Um ser que dizia pertencer ao Céu. Uma enviada de Moros. Como os seres angelicais de fábulas infantis, as quais o rei contara tantas vezes à sua filha. O rei inclinou-se para frente, tentando encontrar a sinceridade nos olhos da boneca, que nada revelavam. Estreitou o olhar quando ela abaixou a cabeça.

- Seu desespero me parece real, boneca de pano. Suas palavras soaram sinceras. Claras como o badalar dos sinos à tarde. - Relaxou no trono, ainda rígido. - Pois bem, em nome do nosso pai Moros... Poderia me contar sobre o real autor do livro?

Era claro o interesse do rei. De mãos dadas à sua suposta fé, estava seu senso de justiça para com seu reino. Olga tinha os olhos vazios, assistindo à boneca. A princesa não sentia pena. A princesa não sentia compaixão. A princesa estava cética."

"Os cantos dos lábios finos do rei ameaçavam sorrir a cada informação que lhe era dirigida. Seu sorriso abria, como uma fresta do azul anil por entre as nuvens de um dia cinza. Para fazer brilhar a luz do sol, os seus dentes cor de pérola. Balthos era o homem mais contente de Lyrienso, àquele momento. Suspirou, com um alívio, erguendo os olhos para as pinturas de ancestrais da família Vendramel. Parecia esperar que as ilustrações lhe sorrissem por orgulho. Quando repousou seus olhos ardentes sobre a boneca, soltou uma curta risada como aprovação à boneca. A descrição de Durwart, sobre Aloysius, era semelhante à da boneca. Acréscimo à sua convicção de que estava próximo de capturar o garoto.

- Moros há de velar o seu destino, e fazer de ti brilhante, minha pequena boneca de pano! Guardas, levem-na ao nosso melhor aposento de hóspedes. Tratem-na com o merecido esmero!

Os guardas que a trouxeram, estavam de prontidão para encaminhá-la para fora dali. Por entre os corredores de piso lustrado, de lustres enfeitados por diamantes, e de mil portas escondendo segredo algum. Olga abaixou a cabeça, escondendo a melancolia de seus olhos miúdos."

"A personificação da beleza estava a contemplar a cidade aos pés da montanha, nessa era onde estava fincado o palácio real. A torre do relógio banhada pela luz sépia da tarde, refletia nos olhos de mel escurecido da princesa. A sacada em meio-círculo, saltava da fachada do palácio real, para o mundo repleto de uma luz constante que incomodava tanto à moça. Tinha os dedos delicados sobre a mureta, quando repousava os olhos tristes na tarde que findava, e fazia do lago ao longe, enferrujado por um instante."

"Passos leves preenchiam o corredor de teto alto, refletido no piso que de tão lustrado, servia de espelho. Vez ou outra, uma mobília encostada à parede, sob quadros extensos, servindo de suporte aos vasos e estatuetas. Armaduras polidas postas ao longo do caminho, como que guardas de prontidão para receber alguém importante. Presumia-se que aqueles corredores pertenciam à área próxima à entrada do castelo. A claridade proporcionada pelos lustres, e as cores claras das paredes, construía o ar convidativo do lugar. Ao fim do corredor, uma grande porta escancarada para a sacada onde a princesa estava. Ela virou, em um movimento sutil, e encontrou a figura da boneca distraída. Seus lábios rosados, em silêncio, lançou a palavra muda ao ar: "Cecille"."

"A generosidade em um sorriso que se desenhou na sua face. Um sorriso contido, tímido, quem sabe? Os olhos tristes e miúdos da princesa detinham um mel líquido bonito de se ver, de superfície calma. Um olhar seguro, como aquele de seu pai, mas com aquela feminilidade sua.

- Por favor, venha cá, Cecille...

Pedia a sua voz macia, como uma melodia gostosa de se escutar, que hipnotiza os ouvidos mais abertos e faz vibrar a alma com o tom. As cores claras da pele e vestido da princesa, em contraste com a noite que às suas costas, despencava. A lua parda estava sobre a sua cabeça, mais uma noite."

"A princesa uniu as mãos na altura do ventre. O sorriso desaparecia aos poucos. Como o brilho dourado da chama que está a morrer enquanto queima. Com uma expressão solene, ergueu o queixo e proferiu palavras macias, mas que soavam como uma valsa lenta. Alguma coisa melancólica. Palavras macias, porém pesadas. Como uma boneca feita de pano, mas com enchimento pesado.

- Cecille, filha das talentosas mãos do genioso professor Armstrong, peço com gentileza... Venha cá. Não sinta medo."

"A princesa suspirou, descontente. Desviou o olhar para o céu de pano onde se penduravam as estrelas. Como que encaixadas nas suas linhas prateadas, amarradas ao tecido celeste, pelas mãos dedicadas de um deus. O surrealismo de Lyrienso já não mais lhe agradava. Voltou-se à sacada, de costas à boneca, para apoiar as mãos na mureta mais uma vez, e responder de modo que Cecille ainda pudesse escutar.

- Professor Hamson Armstrong, o então desaparecido cientista. O homem que teceu a sua vida, com linhas que não são as do destino. - Fez uma pausa e espiou-a por cima do ombro, com receio para com suas palavras. - Peço-lhe humildes desculpas por fazê-la parecer tola... Diante da verdade.

Ela voltou-se às luzes de Miskronie. Os poste-lampiões alinhados na avenida principal, ao longe."

"O blefe e o descaso de Cecille lhe eram ignoráveis. A princesa tinha em mente, mostrar à boneca, o peso de suas escolhas. Bastava que pudesse continuar falando, enquanto assistia o decorrer dos dias, conforme girava um céu preguiçoso.

- O seu mestre não lhe abandonou, Cecille... O seu mestre lhe fora arrancado. Por um desejo nobre e ousado. Um desejo muito parecido com o de seu amigo, Aloysius. Peço a sua compreensão para comigo, Cecille. - E ela virou-se para encará-la. De olhar amargurado. - Está certa de se opor ao seu mestre e ao seu amigo?"