☄ Miskronie

Manhã de um dia com nome estranho, já me era ausente a noção dos dias. Nas sombras de um prédio alto, em uma rua comercial não tão movimentada, eu era um ninguém, cercado de ouro e prata, essas pedras brilhantes emoldurando as janelas dos nobres que ali viviam. Um desleixado, abandonado, a esmo ali, com os olhos verdes ainda brilhantes voltados aos Vings que voavam, tão livres, à altura das nuvens de algodão. Como seria poder tocar essas coisas tão distantes, os sonhos que na infância se almeja e na adolescência se desvia? Voltei à Miskronie pois desejava encontrar um nobre que eu conhecera há algum tempo. Crente que nobres, vivem ali. Colei cartazes feitos à mão com os dizeres "Cartola perdida de Senhor Gale", mas não pude informar onde poderia encontrá-la. Eu não tinha a cartola, muito menos uma casa. Agora eu descansava, longe do brilho cansativo do sol, e com a faca eu arrancava as pontas longas do meu cabelo, para deixá-lo à altura das orelhas. Além dos cartazes da cartola, havia uns com os rostos meu e de Anne, como fugitivos do palácio real.

Era ele, aquele homem da cartola banhado pelo sol, que eu tanto procurara. Guardei a faca, já cortado o suficiente do meu cabelo, deixando-o eu diria, médio... E torcia para que não me comparassem aos cartazes de fugitivo que eu era. Levantei-me e esperei o homem se aproximar mais, para ir até ele a passos lentos, sair das sombras do prédio para o dourado do sol, daquele dia de céu azul. Abraçando a mim mesmo na minha insegurança de me expôr a qualquer olhar atento, de alguém desejando a recompensa do rei, desejando ainda mais do que tinham, para construir suas estátuas de ouro que um dia, sei disso, sucumbam com toda aquela mentira encenada. A uma distância moderadamente curta, eu parei.

- Senhor Gale... - Disse eu, em voz baixa, com aquela voz carregada de exaustão. - Sou eu. O garoto que encontrou no porto.

Eu esperava melhores saudações, mas de que serviria, quando os ponteiros do relógio da torre se moviam loucos, aproximando-nos das nossas futuras falhas, e até mesmo de uma súbita morte? Comprimi meus lábios e abaixei meus olhos, que já não eram os mesmos desde que eu convivera com a loucura de Juan Ombroso. Procurava nos vãos entre um ladrilho e outro, o brotar de uma flor ou uma plantinha tímida, daquele solo fértil que cobriram com pedras. Uma resposta, eu diria.

- Que eu não seja um incômodo... Não gostaria que eu fosse. Quero sua ajuda. Tem influência. Veja os cartazes, sou um fugitivo do reino. - E procurei com os olhos, algum cartaz nas paredes das construções que nos cercavam. - Você, um nobre de alguma importância. Preciso ir para Kância.

Àqueles que encontram-se sem teto e amparo na chuva, um convite como o que o homem me fizera, estava perfeitamente bom. Assenti, sem hesitar. Quem me denunciaria se não pudessem me ver?

- Que me perdoe por incomodar! Mesmo! - Tentava eu, buscar as palavras que traduzissem o quão eu estava contente. - Sou grato.

Enfiei a mão no bolso do sobretudo abotoado, certificando-me de que eu tinha metade do que sobrara da quantia que a princesa me dera. A outra metade, eu deixei com Anne para que ela pudesse partir. Eu queria pagá-lo devidamente ao fim do favor.

Deixei minhas moedas no bolso e segui-o, com a paranoia de um criminoso, coisa que eu não era na realidade. Um carro preto passou reluzindo sob o sol. Quando ele passara ao meu lado, minha respiração prendera. Era como se minha mente acusasse todo cidadão de Miskronie, como caçadores de recompensa ou um conservador faminto por uma justiça cega. O caminho era longo, eu via.

Eu era um curioso. Vislumbrando todas as nuances de uma riqueza invejável por muitos, conforme atravessava os portões de ferro da mansão do homem, Gale. Um nobre, eu sempre soube que ele era. Mas nunca me questionei em que proporções. Um belo jardim acariciado pelos raios do sol. Ah, aquele sol que eu encarara de perto, em um dia distante... Uma vez dentro da mansão, meu olhar não pôde deixar de notar o baú e a cimitarra. Coisas que me remetiam a algo muito familiar. As velhas ilustrações dos contos sobre piratas. Que Gale era, um colecionador? Quando já enjoado da minha distração, eu notei que Gale me indicara uma poltrona, onde me acomodei. Era confortável, o mais confortável apoio que eu tivera dentro de três dias ao acaso. Repousei os olhos sobre o homem.

Uma pergunta previsível, eu diria. Encarei-o, com uma expressão solene, como um visionário, de ideias majestosas e texturas gastas. Me demorei um pouco, a formular a resposta, uma explicação que não denunciasse a mim como um louco, como um daqueles filósofos de praça cuspindo teorias jamais compreendidas.

- O tal mundo, como o conhecemos... É uma mentira. Naveguei para até o pôr do sol. Por detrás do pano do céu, descobri um mundo de rascunhos. Ou um mundo rascunhado. - Pausei, pensativo. - Coisa estranha essa, que me obrigou a partir em busca da real verdade sobre o nosso mundo. Fui preso no palácio real, mas escapei. Escrevi um livro acusando essa tal crença em Moros, de cegar o reino... De esconder a real verdade. Que ainda desconheço. Escrevi assinando como um Manson. Não encontrei o livro à venda. Quero ir à editora, em Kância, descobrir o que há.

Mas ainda, eu sabia, soava como loucura. E eu havia feito tantos cortes...

Assenti em concordância, como a anormalidade absurda da ideia parece-me comum. Até escutar à risada de deboche, e a sinceridade do homem. Antes um pouco inclinado para frente, eu desmoronei para trás, joguei-me no conforto da poltrona, com um olhar baixo que recolhia-me para mim mesmo. Que ele estava certo, eu sabia, mas custava a mim acreditar. Garoto impulsivo e demasiado sonhador que sou, nunca suspeitaria das inúmeras falhas presentes em meus nada planejados, planos.

- Que o senhor faria? - Levantei o queixo e perguntei, de olhos bem atentos, como se eu fosse enxergar as palavras do homem no ar, invés de escutá-las.

Fixei um ponto qualquer com um olhar canteiro, conforme as nuvens de uma dúvida se dissipavam de minha mente, sopradas por um sábio vento que trazia-me boas sementes. Assenti de leve, e encarei o homem. Os meus olhos, arregalados, brilhavam diante da ideia que havia de ser polida, mas era boa.

- Eu posso isso. - Denunciando o marginal que eu me tornava. - Preciso que me leve à Kância. Para que eu faça o que eu devo.

E eu tinha sede de compreensão, de afirmações. Isso estava no meu olhar sedento, quase que desesperado, ansioso para ver o real ouro que nos esconderam. Era mais que curiosidade, era ambição.

Parte de algo eu tinha em mente. Fragmentos, de cenas imaginárias, de um futuro incerto... Não poderia chamar esse pedacinho de algo, um plano. Abaixei meus olhos, já não mais transbordando a coragem e confiança que tinha. Era mais como um garoto tímido agora, temendo o possível fracasso.

- Saiba que, como criminoso que imaginam que sou, não posso comprar passagens de teleférico. Serei um acompanhante do senhor. Deve ter um controle moderado na estação de teleférico. Não vão demorar a me reconhecer. Com sorte, já estaremos no teleférico, à caminho do terminal, em Kância. E que haverá no terminal? Funcionários avisados de minha chegada. Terei de fugir.

Um disfarce, isso retardaria a falha do procedimento. Espiei o homem por cima do ombro, quando ele fora pegar algo.

- Gosto da ideia.

Fui simplório. Fiquei contemplando a luz de milhões de velas irradiando em forma de dia, começo da tarde. E as cores aprisionadas no vidro, eram reflexos do sol, algum fenômeno bonito que eu não sabia explicar. Naquele silêncio um tanto tedioso, notei que a parte que eu arrancara do cabelo, me fazia um pouco de falta.