☄ Havange

"Ele ia, remando, naquele esforço braçal para fazer deslizar, a canoa sobre as águas um pouco agitadas. Respingava água sobre as duas figuras, conforme a madeira dos remos se chocava contra o mar, produzindo no silêncio um som estrondoso como trovão, para ouvidos mais atentos. Mas sim, a sereia também estava a produzir o belo som de suas palavras, já não tão apreciáveis assim. Álef a escutou, atento, de olhos baixos e um meio sorriso que pouco saberiam o que significava.

- Sim... Você pode me matar...

A luz fraca e morna do porto era sublimada por neblina. Uma não tão espessa fumaça. Era uma neblina leve e gélida, que faria o garoto tremer até os ossos se não estivesse remando, absolvido por tal ato. Sim, o garoto não pretendia se arrepender e retornar para Havange. Não agora."

"Logo as correntes estavam guiando-os, por através da neblina e para fora dela. Álef poderia dizer onde estaria, se pudesse apanhar sua bússola no bolso do casaco. Sim, ele poderia. E o fez, cessando o remar por um instante para checar em que direção deveriam seguir. O ponteiro apontando ao oeste estava lá. O menino usou apenas um dos remos para girar a canoa e direcionar, aos misteriosos mares do oeste. Para onde estavam as irmãs de espécie daquela sereia. Onde encontrara ela.

- Bem, eu não sei ao certo... Nunca me arrisquei a ir tão longe em uma canoa...

Minutos arrastavam-se. Talvez horas! Mas talvez estivessem distraídos com a lua parda lá no céu, velando por eles. Talvez só estivessem cansados demais para saber. E nessa madrugada longa, quando cercados por um infinito mar negro de todos os lados - com exceção de alguns poucos rochedos recheando o vasto vazio -, o garoto cessou o remar e recolheu os remos para dentro da canoa. A lua estava a se distanciar, para em breve dar lugar à luz do alvorecer. Álef respirava fundo, encarando à bússola nas suas mãos.

- Avançamos um pouco além dos limites dos mares do leste... Veja, são os seus mares, esses mares do oeste... É livre.

Disse por vez, erguendo os olhos castanhos e cansados para a bela figura que carregara até ali."

"Nas águas escuras refletindo um céu que entrava em um degradê de negro para um azul sombrio, Álef assistia à sereia. E suas pernas já não estariam mais ali. O garoto não se desvencilhou do toque da sereia. Apenas à assistia, com um ar distraído. Talvez estivesse a contemplá-la. Talvez soubesse que não mais a veria. Sobrevivendo ou não... Sorriu à ela, com aquele jeito levado dele de ser, e respondeu.

- Heh! Você sabe... Não me parece um lugar adequado...

O menino afastou sua mão da dela, e apanhou os remos. Se pôs a remar, tranquilo. Talvez ele soubesse do risco que ainda corria, talvez fosse ingênuo... Quem saberia? Sim, ele pretendia partir. E, sim, ele tinha consciência de que partir seria o mais complexo perante à uma sereia. Aguardava o perigo, a cada movimento dos remos."

"Das águas que faziam o caminho do garoto, surgia novamente a sereia. E sua persuasão, e sua sedução, com a total ausência da compaixão, faziam dela uma figura forte. Uma figura que provocava Álef em diversos sentidos. Aquelas preocupações ali expostas, talvez fosse tolice a dela, talvez fosse mesmo frágil... Mas era um mar deserto que os rodeava, sem navegações piratas, sim, nenhuma delas. Nem sequer ao longe. Aqueles eram os mares do oeste, o garoto sabia. O terrível e temido oeste, nos quais poucos se aventuravam. Os mares sobre os quais nuvens de algodão creme ou cor de abóbora, sempre pairam. Ode ao mistério do lugar, talvez. Álef recebia as carícias da sereia, com algum desconforto. Porque aquilo lhe desconcertava e tirava o raciocínio. Visto que estava sem um remo, ele apanhou o outro, sem se desvencilhar da sereia, e puxou para perto de si. Com as mãos e as pernas livres, ainda que a sereia estivesse impedindo uma movimentação maior, segurou o remo com as duas mãos e levantou um pouco o joelho. Arrebentou o remo em metades desiguais contra o joelho, e segurou forte, consigo, a parte cuja ponta estava afiada. Espiou a sereia, e sorriu de leve.

- Parece tentador... Qual a punição?"

"O azul do tecido celeste clareava aos poucos. E logo estaria o sol de madeira, a queimar sobre o mar, criando rajadas brancas de luz sobre as águas. Álef, cuidadosamente, puxava o pedaço do remo que lhe serviria como uma arma. Em prol à sua sobrevivência. Talvez sentisse ódio pela sereia, ou talvez compreendesse a natureza daqueles seres. Como quando se coloca um prato de peixe sobre a mesa, sem questionar os princípios daquele animal já morto. O garoto ainda apreciou daqueles beijos e, súbito, se afastou para até a outra ponta da canoa em um movimento brusco, apontando a sua arma - o pedaço de remo com ponta afiada - ao seio esquerdo da sereia. Estava próximo o bastante para ferir em um movimento, se desejasse. Contudo, ainda era uma ameaça, de um garoto que mantinha sempre um sorriso, ainda que de leve. Ele arqueou a sobrancelha.

- Bem, visto as circunstâncias atuais... - Álef comentava, passando um olhar distraído sobre as redondezas, como que se analisasse alguma condição temporal ou climática. - ... Eu proponho um trato. São poucos os navios que atravessam esses mares, se me entende... São mares perigosos, e você deve se orgulhar disso, eu diria... Veja, eu posso atrair tantas tripulações ingênuas para os seus mares, que você teria mais do que um moleque feito eu... Eu diria que sobraria homens em dispensas, se vocês sereias tivessem alguma dispensa... Contudo, se insistir...

Álef aproximou a ponta do remo mais um pouco."

"Viu-a surgir às suas costas. Viu-a agarrada a si. Álef girou a arma, de forma que a ponta estivesse apontada para si mesmo. Com um olhar canteiro, espiou o rosto que lhe cochichava. O menino sentia-se atraído pelo desejo. Talvez seria prazeroso se a beijasse, mas era certo de que seria o beijo que faria-o sucumbir às profundezas do mar. À morte.

- Ora, também desejo você... Mas Moros não permitiria... Entende?

O garoto segurou o pedaço de madeira firmemente, com as duas mãos, e o girou com força, lateralmente, de forma que a ponta não afiada atingisse a cabeça da sereia em um estalo, se conseguisse. E, quem sabe, isso fizesse-a inconsciente durante o tempo necessário para uma fuga?"

"O garoto viu-a afundar. Talvez fosse sentir arrependimento, ou talvez alívio por ainda estar vivo! Usou o pedaço de pau para remar. Sim, só havia um, então com outro braço tentava substituir o remo que lhe faltava. Espiou o ponto onde a sereia mergulhara. Não sorriu. Voltou-se ao infinito que lhe recebia como um desafio. Sobreviver até encontrar o porto, sim, seria-lhe um desafio! Álef partiu, livre. Na consciência de que sua liberdade estaria sempre em risco."

"Luz do sol aprisionada nos tantos olhos, que assistiam ao sol de madeira a queimar eternamente, lá em cima. Álef estivera adormecido no pouco espaço da canoa, de braços atrás da cabeça para servir de apoio. A canoa estava amarrada ao porto, mais uma vez. O garoto tinha um olhar preguiçoso voltado às poucas nuvens de algodão de um dia quente. Ele ajeitou-se sentado e apanhou com as mãos, um pouco da água do mar para lavar o rosto e se dar como acordado. Desse ato de despertar, partiu então dali, subindo as escadas do cais para até as ruas sem asfalto da cidade portuária. Poucos navios estavam ancorados ali àquela hora. Os pescadores carregavam peixe ao armazém. Os gatos miavam, esfomeados, no aguardo de algum alimento. Talvez fossem esperançosos, ou meramente tolos, pois sim, eles sempre seriam espantados com alguma vassoura ou coisa do tipo. Havange estava a mesma cidade de sempre, Álef via. Mas ele sabia que de si, não poderia dizer o mesmo. Vasculhou os bolsos molhados e conseguiu os últimos trocados, com os quais comprou uma pera de uma barraquinha armada na porta do armazém. Saboreou, apreciando o pouco movimento da rua."

"Veio uma figura curiosa, que esbarrou contra Álef. A pêra rolou sobre a areia seca e vermelha. O menino manteve o equilíbrio com certa dificuldade. Assistiu, com pesar, a fruta rolar na imundice, mas não lamentou. Logo seu olhar retomava a vivacidade para assistir à preocupação do homem para com a garota. O garoto balançou a cabeça negativamente e baixou o olhar, afundando as mãos nos bolsos do casaco.

- Desculpas aceitas... E você, está bem?

Pergunta vaga, uma vez que aquele ruivo de certo cuidaria de tudo para garantir o bem estar da garota. Talvez Álef tentasse ser educado, ou seria alguma preocupação boba de sua parte?"

"Sob a sombra das nuvens que se apoderavam do sol, o garoto ouvia. Encarava aos seus pés, ou talvez aos pés da garota, sim! Por distração ou não. Repetiu o nome que ela dera, mentalmente, e ergueu os olhos para encontrar o verde dos dela. Um arrepio percorreu-lhe o corpo por um instante, como que na mórbida sensação de encarar à morte. Aqueles olhos, sim, lhe eram familiares! Álef não cogitou possibilidade alguma. Mas não negou uma leve semelhança com outra figura que conhecera...

- Sou Álef... - Respondia ele, retomando o foco. - Hmm... Seria uma honra, "princesa".

Um pouco de sarcasmo ele tinha na fala, talvez. Sim, ele tinha algum humor seco cheio de malícia, tanto na fala como na desenvoltura.

- Antes... Eu gostaria de saber... Nunca os vi por aqui. De onde são?"

"O menino tirou as mãos dos bolsos e arqueou a sobrancelha diante da reação da garota. Deu de ombros e espiou por cima do ombro, as crianças pobres a cirandar. Sim, era o que elas poderiam fazer, brincar umas com as outras na ausência dos brinquedos. Quando Álef voltou-se às duas figuras, assentiu em concordância com a sugestão.

- Divella. A fantasiosa cidade de Divella... - Fez uma pausa, mediante a situação. - Tenho um quarto de pensão. Vocês, onde estão? Alugaram alguma casa? Basta sugerir um local, e iremos...

Um sorriso de leve desenhou-se na sua face. Sob a conduta da sorte, ele arriscaria. Talvez por curiosidade, ou por fome diante da ideia de uma refeição."

"Então, por aquelas familiares bandas, Álef os guiou para até um restaurante tematizado, com vista para a vastidão oceânica e janelas circulares que imitavam aquelas dos navios à vapor, raramente vistos. As paredes de tábuas revestidas por um papel de parede de tom ocre. Quadros retratando feitos heroicos de piratas desafiando os lendários monstros marinhos. Eram quadros, para muitos, fantasiosos. Uns poucos retratavam sereias sobre rochas. Álef poderia julgar que, aqueles artistas tinham um conhecimento avantajado dos mistérios dos mares. As mesas tinham um formato semelhante ao de um timão. Nos cantos, alguns barris decorativos. A ideia seria de recriar o ambiente de um navio ou coisa do tipo, mas era perceptível que a falta de verba impedira de tornar as coisas mais interessantes, sim. No balcão, ao fundo, estava um homem com um monóculo de bordas douradas, que era mais detalhado que um comum. E um braço mecânico. O garoto indicou uma mesa aos seus acompanhantes, ou seria o contrário? Lá se sentou e indicou o cardápio, na espera de um garçom. Sim, Álef julgava que os desconhecidos tivessem alguma quantia generosa nos bolsos, por isso os levara ao melhor - ou o menos pior - restaurante da cidade."

"O menino escutava-o atentamente, enquanto observava a garota procurando pela assinatura do artista em um daqueles quadros emoldurados por bordas de detalhes rebuscados. Álef sentiu um pesar por ela. Isso estava expresso em seu olhar, onde agora residia um sentimento de pena. Copos brindavam em alguma mesa distante. O garoto encarou ao homem. Juntou as mãos sobre a mesa, e reuniu o que sentia para lamentar...

- Sinto muito por ela... Moros tem sido injusto, sim... Tem sido injusto com muitas pessoas.

Um garçom viera anotar o pedido. Álef pediu uma salada de frutos do mar, temendo em que estado estariam os tais frutos do mar.

- Veja, sou nativo dessa cidade... Se precisarem da minha ajuda, tentarei estar por perto."