☄ Havange

"O cotovelo do menino foi apoiado sobre a mesa, e a mão foi ao queixo para servir de apoio. Um observador, e sem modos, Álef. Quando a menina retornou, ele espiou-a por um longo instante. Talvez se identificasse um pouco com ela, por ambos terem tido um pai nada amoroso - no caso dela, pior -, ou talvez só a observava, vagamente. Os olhos castanhos, sim, voltaram ao homem para dar-lhe uma resposta.

- Podem dividir do meu quarto de pensão. Sabem, não é nada grandioso... Eu diria até que é um tanto desagradável, aquela pensão. Mas se não se importarem... - E o garoto voltou a observar Hime. - Hmm, do que você gosta de fazer?"

"Os olhos de Álef repercutiram de Brian para Hime, quando ele levemente sorriu e sugeriu, com aquele ar tranquilo mas estranhamente pesado. Sim, era um garoto de uma presença forte, com boas e más famas pelo porto.

- Bem... Podemos correr de uma ponta do cais para outra. Não vão te atormentar se notarem que é uma colega minha... Contudo, Brian tem de dar permissão...

O garoto pousou os olhos sobre o ruivo, sem tirar o sorriso do rosto. O garçom veio e serviu os pratos, e copos de suco de uva aguado. Na sede, Álef bebeu um gole daquilo."

"O garoto contentou-se em afundar no seu silêncio, sim, visto que Brian não parecia aprovar a sua ideia. Ora, buscava um pouco de diversão à garota, sim, pois todas aquelas restrições pareciam torná-la muito mais frágil do que realmente era. Talvez estivesse certo, ou Álef é um idiota que não reconhece a sereia do dia passado. Tomou de mais um gole do suco, colocou firme o copo sobre a madeira da mesa, e respondeu.

- Álef, senhor. O guia desses mares...

Informava com orgulho, e um meio sorriso."

"Das janelas em círculo, nas paredes, podia-se ver as águas tranquilas por onde, ao longe, passava algum navio comercial. A distração durou pouco. Algo despertou o interesse de Álef. A pergunta da garota, naquele tom de voz que lhe era familiar. Mas, envolvido pelo interesse da garota em contos do mar, o garoto ignorou, pois sim, ele adoraria entretê-la com algumas de suas aventuras. Os seus braços foram postos sobre a mesa, afastando o prato e o copo. Um braço sobre o outro, dobrados. Ele se ajeitou na cadeira, e começou, vasculhando o ar com os olhos na busca pelo fio da memória.

- Posso dizer que conheço muitas das histórias do mar... Muitos contos. Alguns se mostram reais, outros não passam de mitos. - Álef demorou-se, encarando-a e sorrindo. - Mas veja, seria chato se eu lhe contasse um mito do qual nunca tirei uma prova... Então posso contar um real. Vi uma sereia. Com esses meus olhos cansados, sim! Vi uma sereia, nos mares do oeste... Os misteriosos mares do oeste... Eu era parte de uma tripulação, de homens que se diziam corajosos o bastante para explorarem o oeste. Bem, veja, eles me expulsaram do navio quando encararam os perigos daquelas águas e me culparam de guiá-los à morte. - Ele se afastou da mesa, agora encostando as costas no encosto da cadeira e cruzando os braços. - Retomei consciência deitado sobre uma rocha... E lá estava ela, a mais bela das sereias! Ou a única que eu tenha visto, heh..."

"O garoto diminuiu o sorriso, pensativo. Brincou com os talheres que pouco usara, visto que pouco comera, sim. Talvez por estar envolto daquela conversa, mas não era importante agora. Baixou o olhar e riu brevemente, no deleite de suas lembranças.

- Bom... Ela pretendia me devorar, acho que isso não faz dela tão boazinha, se é que me entende... - Álef sorriu, divertindo-se. - Mas quando a lua veio, sua barbatana desapareceu e deu lugar às pernas. - E belas, pensava. - Fomos sequestrados por um navio pirata... Inventei uma mentira tola para escaparmos... Então, estávamos em Havange, era tarde e eu ofereci meu quarto de pensão à ela. Ah, eu a ensinei a andar! - Ele tomou um gole do suco. Ou tentou, pois notou que não havia restado mais nada, e desanimado largou o copo sobre a mesa. - Não era uma sereia muito compreensiva... Fui paciente, ela nunca estivera entre humanos. Gostava dela. A levei ao mar, porque ela queria ir para casa... A devolvi ao mar. E tive de fugir... Sabe, sereias são perigosas, os contos sempre dizem... Gostava dela.

Álef beliscou mais um pouco dos frutos do mar, atento a qualquer carne em mal estado."

"Um longo silêncio instaurava-se sobre a mente de Álef, pois sim, perdia-se na névoa que se elevava sobre o seu mar de lembranças! O garoto, não tão atento, observou as duas figuras a sua frente. Sim, o garoto recebeu aquele olhar do ruivo, e com certa demora pôs-se a entender, afastando as mãos da mesa de súbito.

- Pois bem! Poderíamos ir à pensão agora, concordam? - Álef apressou-se, levantando e ajeitando a cadeira. Um garçom viera cobrar a conta. - Faça as honras, senhor! - Disse ao ruivo quando fora cobrada a quantia em moedas de prata.

Álef, despreocupado com o pagamento, atravessou o salão de mesas e partiu saída afora, crente de que os dois o seguiriam. Sob o sol crianças giravam em seus trapos, para enganar a fome com o gosto açucarado da infância. As tábuas do pier rangiam, conforme homens brutos pisoteavam-na em seus passos lentos. A pensão estava lá, aquela velha construção que ameaçava ir abaixo, sim! Álef apanhou suas chaves com a recepcionista e subiu as escadas por onde transitavam os ratos. Gritos femininos de um quarto, e uma mulher corria seminua fugindo de um bêbado cambaleante parado à porta. Ao meio de tudo isso, estava o quarto do garoto. Um dos cantinhos mais tranquilos daquela decadente pensão. A porta fora aberta, e o simplório quarto os recebeu com humildade."

"Uma garota rendia-se ao cansaço, sobre o colchão de uma velha cama. E fazia um pedido, sim. Álef, com alguma generosidade que lhe restava, sentou na beira da cama, de mal jeito, e sustentou uma confusão no olhar. Pois sim, ele não fazia ideia de como realizaria tal pedido! Quando menor, nunca fizeram tal coisa por ele. Poucas vezes escutou alguma canção de ninar. Mas ainda que a letra lhe fugisse da memória, havia o ritmo, que ele se pôs a cantarolar em um tom de voz doce. Talvez aquilo fizesse da garota, adormecida. Ou talvez ela odiasse a canção e o desaprovasse por uma tentativa falha. Álef esticou as mãos para até a ponta da cortina aberta, e a fechou para escurecer o ambiente. O garoto não deixara de cantarolar, com os olhos pousados sobre a figura que, em altura, não parecia muito diferente de si. Que idade aquela grande criança teria, quem saberia? O menino levemente acariciou-a o rosto e passou a mão sobre seus cabelos, a fim de confortá-la. Sim, Álef estava enjoado de cantarolar e desejaria que ela dormisse logo."

"Uma mão urgente puxou-lhe, e lábios macios acariciaram os seus, sim, e no ímpeto de seu desejo ele retribuiu. E nesse ato, havia um misto de desejo e medo. As palavras da garota eram claras. A revelação lhe tirara o fôlego, mas não mais que aquele beijo do qual apreciava tanto! Álef sentia o fogo tomar posse de seu corpo. Ardia. Mas ainda assim, não saberia dizer se queimar era bom ou não. Talvez houvesse alguma dor, ou era só o prazer. Rendido aos seus instintos, agarrou-a, com o toque ousado de um rapaz feito ele. Ao perder os lábios dela, no término do beijo, olhou-a nos olhos verdes, com seus olhos castanhos que pediam mais. E encheu-a de leves beijos, da boca ao pescoço... Ávido."

"O despertar do sonho, sim, é tão cruel! Álef levantou-se da cama, quando viu a sereia retirada de seus braços. Com os olhos sustentando a decepção, ajeitou a calça e fitou as duas figuras, expressando um meio sorriso sarcástico.

- Heh! É tudo parte de algum plano seu, imagino... - Álef deu de ombros à ameaça do ruivo, apenas encarando à moça. Seu sorriso desaparecera. - Te devo desculpas por seu olho. Veja, não era intenção minha te ferir assim... Te ferir o olho... Eu precisava fugir! - E caminhou um pouco, com um ar tranquilo. Mas sentia um desejo incontrolável, ainda! Sim, talvez fosse o revólver apontado a ti que fazia o seu sangue ferver, mas talvez fosse o desejo angustiado ainda! Álef parou de costas à janela oculta pelas cortinas, e prosseguiu. - Bom, meu senhor, eu proponho uma batalha até a morte pela guarda dessa garota... A "princesinha"... Ou será covarde e matará um moleque desarmado com um disparo?"

"Estranhamente Álef sentia, sim, que não poderia vê-la partir assim, de repente! Havia dentro de si aquele desejo de sentir mais, como um gosto amargo de sol na boca da ávida noite. O garoto tentava manter a coerência, conforme via-os se afastando sob o arco da porta. O garoto puxou a cortina, súbito, a rasgando. Correu carregando-a consigo como uma capa que cobria-o parcialmente. Pela transparência do tecido, enxergava através dela. Corria de um lado para o outro na direção deles. A ponta da cortina dançava, balançando de lá para cá, capaz de confundir olhos não muito atentos. E em uma tentativa, quando próximo do ruivo, agarrou as pontas do tecido e, com força, tentou cobrir o ruivo com a cortina a fim de atrapalhá-lo para tomar o seu revólver. Aí ele levou um tiro para deixar de ser idiota."

"O desatar da dor na sua perna esquerda veio-lhe, fazendo espirrar o sangue que lhe corria, quente, nas veias. Álef grunhiu de dor e caiu de joelhos, assistindo à sereia partir. Partiu junto de seu coração, pois sim, ele agora compreendera a mítica maldição das sereias. Até o mais astuto dos rapazes cairia em tentação, sim. Talvez fosse o desejo, mas alguns chamariam de fraqueza humana. Um homem bêbado no corredor caminhava pelos corredores que sua visão embriagada distorcia. Ele assistiu ao sangue que escorria do menino, e entretido, sorriu. Logo o socorreriam."