☄ Angieses

Eu abandonei a vastidão dos campos cujas plantações se curvavam diante do sopro do vento, que uivava e adentrava a janela por um buraco. Era frio. Virei-me para Anne ao escutá-la, e dei um pequeno sorriso canteiro, assentindo como resposta. Era bom estar junto à ela. Com luz, eu apreciei alguns móveis rústicos que faziam parte do quarto. Fui até a porta e girei a chave e maçaneta, abrindo-a para adentrar o corredor, agora iluminado. Mas luz nenhuma era capaz de ofuscar o terror produzido por aqueles quadros sem rostos, mas com nomes gravados nas plaquetas de cada moldura. Analisei o quadro mais próximo, cerrando os olhos para ler. "Anita Manson", dizia.

- É curioso. Não gosto de pensar sobre. Mas, admito que deveriam ser quadros retratando os rostos de cada Manson. E que significaria a ausência deles?

Não era-me coerente a resposta de Anne. Uma vez que tinham a família Manson como viva, e até os dias atuais escrevendo seus livros. Mas não viveriam eles, aqui? Prossegui pelo corredor, onde no fundo havia uma janela alta por onde infiltravam-se fracos raios de luz. A mansão soava mais agradável quando eu podia enxergá-la. Passei por inúmeras portas fechadas que eu julgava pertencer a quartos ou cômodos não tão importantes. Dobrei o corredor e encontrei uma pequena escada, de poucos degraus, dirigindo-me à uma porta incomum, maior, com desenhos abstratos pintados em preto e vermelho na madeira. Empurrei-a, movido pela curiosidade. Jazia na minha frente corredores de estantes, cheios de livros. Uma biblioteca particular. Atravessei o caminho entre as altas estantes e, ao fundo da sala, deparei-me com um livro demasiado grande, com o tamanho de duas camas, aberto sobre um suporte fixado em um altar. Suas páginas eram amareladas e havia algo escrito que eu não poderia ler se não subisse o altar para me aproximar. Atrás do estranho livro, um enorme vitral composto por um mosaico de cores que talvez meus olhos não pudessem distinguir por completo. Era circular e ocupava uma boa parte da parede alta. Através dele, infiltrava-se a luz solar e envolvia o livro, fazendo-o parecer um artefato digno de uma divindade.

Concordei com Anne, despertando do meu transe, pois estava eu, muito absorto nas cores do vitral. Avancei alguns passos para até o altar, subindo seus degraus e parando diante do livro, que estava inclinado de forma com que pudesse ser lido, mas tive de levantar o pescoço um pouco para enxergar as palavras de forma clara. As letras eram grandes, portanto não haveria demora na leitura. Comecei uma leitura em voz alta, atento.

- "Era a criança do resplandecente olhar, empunhando um pincel como uma espada e a aquarela como um escudo. Acariciou a tela com o pincel, fez escorrer um filete de tinta negra, como uma lágrima que escapa. A gota rompeu-se em várias linhas. Coloriu-se o mundo." - Terminei, arqueando a sobrancelha em dúvida. - É o que diz essa página do tal livro.

Olhei Anne por cima do ombro. Meu coração estava cheio de dúvidas e contornado por um medo desconhecido. Aquilo seria um enigma? Que significava? Mas quando li "tinta negra", foi inevitável a lembrança do mundo por trás dos céus.

As palavras dela abateram-me em um susto. Porque soava absurdo, além da minha capacidade de interpretação! Nunca contaram sobre a origem do reino. Nunca buscaram pelo saber, também. Seríamos os primeiros? Desci do altar, a passos lentos, e fui juntar-me à Anne, mas sem desviar meus olhos arregalados, do livro.

- Não gosto. Que seria a criação do mundo? Soa metafórico. Perdoe a minha confusão, mas... Estou confuso, Anne.

Balancei a cabeça negativamente, para indicar que eu não fazia mínima ideia sobre o paradeiro desses. Veio-me algo de súbito à lembrança, como uma bala perfurando a fumaça da dúvida que cega a mente, produzindo um som violento, e meu coração disparado. Levei dois dedos ao queixo e abaixei a cabeça, começando.

- Perdoe a minha incompetência, a minha falha, Anne! Que erro fora o meu ao esquecer desse detalhe... Diziam no porto que os Manson's jamais foram vistos. Que jamais souberam do paradeiro da família. Tal fato duvidoso, porque a princesa e o garoto da estrada sabiam. - Fiz uma pausa, agora olhando diretamente para Anne. - Que pensaria se os Manson não existissem?

Meus olhos verdes cintilavam, entusiasmados e amedrontados com a ideia.

Cerrei os lábios, intrigado com a pergunta. Sim, que confiança poderíamos depositar na princesa? Uma garota que conhecia os nossos nomes e nossas determinações. Como se que se lesse as nossas mentes e corações. Fiquei a espiar o livro. Que teria nas demais páginas amareladas?

- A princesa, mas que motivo ela teria para tal? Os Manson provavelmente não existem. Mas veja que mansão encontramos! E esse tal enigma...

Suspirei, e me acomodei em uma mesinha de leitura, largando os braços nela, absorto demais.

Espiei Anne aproximando-se do livro. Fiquei calado, esperando por alguma surpresa vinda do livro ou alguma informação nova pelas palavras de Anne.

Entediado, passei a observar com maior atenção a biblioteca. Senti-me atraído por um par de canos de bronze fixados à uma parede. Canos de correio, havia um a cada casa do reino. Levantei-me, com o som do arrastar da cadeira nas tábuas de madeira, e fui checar uma plaqueta ao lado dos canos. O cano por onde vinham correspondências estava fechado, não pude compreender. Somente aquele por onde se enviava correspondências estava disponível. A plaqueta informava um endereço comercial, "Editora Capa de Ouro". Julgava eu, que esse cano levaria a correspondência diretamente à editora. Iluminou-me uma ideia!

- Anne, que me diz de escrevermos o que vimos e assinarmos como um Manson?

Dei de ombros. Pouco sabia eu sobre os Manson, mas a existência deles era duvidosa. Pouco faria a diferença agora. Mas, que eu fosse perdoado por minha decisão, que Anne me escutasse e fosse compreensível, porque eu conhecia a relevância e o peso das palavras que decidiriam o nosso futuro. Virei-me para Anne, dando as costas aos canos de correio.

- Não existem. Prefiro assim. Veja, que se escrevermos sobre o mundo por detrás dos céus e assinarmos como um Manson, pouco duvidarão. - Fui me encaminhando à mesa de leitura, e puxei uma cadeira onde me sentei. Apanhei as folhas espalhadas sobre a mesa e apanhei uma pena que estivera mergulhada no tinteiro. Eu reescrevia o enigma que lera como primeira página. - Peço que entenda. Isso leva tempo. Não suporto a mansão. Mas ela nos abriga. Pode suportar alguns dias aqui?

Quando restou só o som da pena riscando o papel, eu ergui os olhos para Anne. Não me era muito agradável vê-la nervosa. Levantei-me, súbito, largando a pena sobre o papel e provavelmente manchando aquele rascunho. Fui para até Anne, diante dela,e parei, encarando-a com meus olhos da melancolia bonita, feito minha voz. Que ela me censurasse por isso, mas segurei-a a mão.

- Que você saiba, Anne, que é justo. Esteja tranquila. Não gosto da ideia de ter sido o escolhido para tal loucura... Como você. Eu preferia ficar a navegar. Mas que eu posso fazer? - Abaixei a cabeça, e diminui o tom. - Não pense que está sozinha...

Soltei a sua mão e sorri, de leve, para a minha amiga. Apanhei alguns papéis, o tinteiro com a pena, e fui para o caminho reverso ao que fizera anteriormente, para até o quarto. Eu pretendia não frequentar muito à biblioteca, portanto levava as coisas comigo, para escrevermos o nosso livro, expôr o segredo de Lyrienso a todos os que pudessem crer. A tapeçaria dos corredores amaciava aos passos. Cheguei ao quarto e larguei as coisas no gabinete, sentando-me na cama, pensativo.

Espiei-a por cima do ombro, estranhando um tanto a sugestão dela. Arqueei uma sobrancelha, pensativo, conforme meu olhar passeava pelo quarto que em breve escureceria por completo.

- Mas, Anne, sou um garoto...

Eu admiti um tanto tímido. Mas era um garoto parecido com uma garota, brincava a minha mente.

Assenti em concordância, corando por ter sido imaturo... Deitei-me, de costas à ela, e vagaroso, fechei meus olhos... Para permitir ao meu coração, sonhar um pouco.

Era uma tarde de sol fraco, de luz se infiltrando por vidros quebrados e inundando as paredes do quarto com uma claridade pálida. Eu era um garoto de sobretudo aberto, mas sem camisa, e calças leves. Eu tinha um ar introspectivo, sentado no canto da parede, escrevendo sobre um mundo por trás dos céus do reino, e acusando o medo pelo descaso e desconhecimento sobre tal lugar. O medo enraizado e impregnado nos corações daquele povo, pelas palavras cruéis executadas com a calma dos anjos, nos lábios da religião. Que seríamos nós? Que seria eu? Parecido com um ser dotado de pureza, ali, encolhido, com um papel apoiado nos joelhos e uma pena ágil em mãos, blasfemando...