☄ Havange

— Se querem tanto perder a sanidade, deveriam beijar uma de minhas irmãs. — Comentou, confusa com aqueles comportamentos humanos. E novamente o sono estava voltando, fora um dia cheio e cansativo. Mas o medo de dormir ainda estava presente, a falta de confiança naquele humano. A boca da sereia se abriu em um pequeno 'O' e suas mãos foram levadas aos olhos, numa tentativa inconsciente de tentar espantar o sono.

Observara a briga impassível. Humanos eram realmente seres de pouca inteligência, os olhos da sereia estavam cada vez mais pesados ao pensar nisso. E então estava sendo arrastada de novo por um completamente machucado Álef. Logo estavam novamente naquela suíte e a sereia se largou na cama enquanto ouvia o barulho de água corrente.
— Deveria tê-los matado, podem acabar voltando... — Falou em tom cansado enquanto fitava suas próprias mãos, sentia dor em suas pernas. Pernas inúteis e fracas. Não importava o quanto nadasse, sua barbatana nunca ficava dolorida. — O quão inútil é você, Álef?

Franziu o cenho enquanto encarava o humano. Estaria ele mostrando sua verdadeira natureza? Sentou-se e o fuzilou com o olhar.
— Não vejo nada de irônico nisso, afinal aprendi a andar, não é? — Aquilo era uma ameaça? Pegou o travesseiro e o jogou na direção do humano. Desvantagem, uma ova. Não estava mais desesperada, poderia muito bem se cuidar sem ele, sim. Afinal era uma sereia, era superior a um humano em tudo. — Está me ameaçando? É bom que não esteja, posso estar sem barbatana, mas ainda posso tirar sua vida!

A sereia observava as ondas, pensativa. Que saudades sentia de casa! Embora o mundo humano possuísse coisas maravilhosas, jamais seria a mesma coisa. Não, não poderia esquecer suas raízes. Sentia certa tristeza ao visualizar o mar, mas não iria chorar. Não, jamais. Ouviu a voz do humano, embora distante, era como se a sereia estivesse a milhas de distância. Imaginava-se nadando, mergulhando e brincando com suas irmãs.
— Hm...? — Perguntou distraída enquanto virava lentamente o rosto em sua direção. Foi então que o sentido daquelas palavras a atingiu. Voltaria para casa! Um sorriso iluminou seu rosto, mas logo a desconfiança apareceu. Ele realmente a leveria? Pensou nas histórias que suas irmãs sempre contavam, que humanos só pensavam apenas em si.
— Será? Realmente levaria? Muitos de sua espécie diriam que é tolo, afinal... — Os dedos frios da sereia tocaram a mão do humano, começando a brincar com aqueles dedos humanos tão quentes. Por que essa diferença de temperatura? — Sou uma sereia indefesa, não é? Estou presa a essa terra, e sou mais bela que muitas humanas que moram aqui. Qualquer homem em seu lugar faria com que eu pertencesse a ele...
Olhou para os olhos castanhos do humano, como se procurasse algo. Mas o que buscava? Talvez nessa a sereia soubesse ao certo. Aproximou seu rosto do dele, sem desviar o olhar. Poderia sentir a respiração do humano, mas não prestava muita atenção nela. Sua total atenção estava voltada para aqueles olhos castanhos.
—Não é menos cruel que uma sereia? Uma sereia que te devoraria assim que tivesse oportunidade, ou pior, te amaldiçoaria. Tornar-me sua não é tão cruel, não é? Iria me impedir de destruir a vida de outros humanos, não é desse modo que justificam as coisas? Para um bem maior e ainda teria ganhos... — Agora apertava levemente a mão do humano, ainda sem desviar o olhar, ainda buscando aquilo que ela não sabia o que era. — Seria um humano invejado por muitos, poderia fazer sucesso, contariam histórias sobre você. E tem todo o caso de me vender, quanto pagariam por uma sereia?

A sereia tornou a encarar o humano, agora os olhos verdes eram tão frios quanto sua pele. Observou os olhos castanhos por um longo momento até que finalmente disse:
—Não vê, não é? Desde o início eu sabia que jamais me levaria. Porque você é um humano como qualquer outro. — Libertou-o e tornou a sentar-se no cais, abraçou as pernas e apoiou o queixo no joelho, observava aquele mar noturno, tão belo. Que saudades sentia, sim, uma imensa saudade que poderia fazê-la se jogar naquelas águas naquele exato momento, sentí-la novamente em sua pele e estava quase fazendo isso, mas se conteve, sim. Acordou daquele devaneio e suspirou. — Como os humanos das histórias...

Virou o rosto rapidamente para o humano, os olhos verdes faiscaram. Que tipo de pedido era aquele? Respirou fundo e tornou a olhar o mar.
— É só você olhar para si mesmo e saberá, não é? São todos como você, alguns piores até. Eles nunca voltam, vão sempre embora! — Levantou-se furiosa, estaria o mar sentindo sua fúria? Como gostaria arrastar aquele humano para os braços tão acolhedores do mar! Ah, como gostaria! —No início, quando sereias não devoravam os humanos, muitos homens iam para o mar em busca de minhas irmãs. Sempre tão belas! E diziam: Você é tão bela, faz meu coração bater mais forte. Você roubou meu coração, nunca amei tanto alguém na minha vida. Não há humana que se compare a você. Obviamente que eram mentiras! E quando nos entregávamos... Logo eles partiam, e algumas iam atrás, só para descobrir que já estavam com outra mulher. Eles sempre prometiam voltar, para nos buscar ou ao menos buscar o filho. Nunca voltaram, e os meninos morriam! Abandonados, e minhas irmãs observando, o que poderiam fazer? O corpo humano é frágil, ainda mais quando criança. — O ódio ficava cada vez mais presente em sua voz e ela se movia de um lado para o outro, inquieta. Sentia vontade de quebrar alguma coisa, matar alguém, provavelmente o último surtiria mais efeito.
—E então, resolvemos nos vingar. Tornamos os humanos a vítima e nós roubamos seu coração de verdade! E o devoramos. Nosso coração é tão gelado quanto o mar. O mar, ele sempre nos acolheu, nos escondeu e protegeu. Não é como os humanos. E tinham piores... Faziam tudo ser o mais doloroso possível, alguns até mesmo destruíam os corações na partida. Revelavam que jamais voltariam, revelavam a verdade, que éramos apenas um divertimento, nada mais. São assim que são os humanos. É dessa forma que é sua natureza. — E deu um sorriso carregado de ironia. Fechou os olhos enquanto tentava se acalmar, tentou pensar em coisas agradáveis, lembranças de sua vida com suas irmãs. Finalmente tornou a sentar-se, mas longe do humano e de costas para ele, aquela vontade de se jogar ao mar cada vez mais presente, porém tinha que lutar contra ela, seria perigoso e muito tolo de sua parte.