☄ Divella

Aos pés da roda gigante, saltei do cavalo e pulei a grade. Logo viriam mais soldados. Lancei um olhar para Richard, temendo a segurança dele. Me apressei a escalar a estrutura férrea do brinquedo. Enferrujado. E eu, um garoto que nunca fora desse tipo, tinha dificuldades em escalar. Eu pretendia chegar ao topo do brinquedo. Espiando mais um pouco, na imensidão do parque de cores mortas escorrendo com a chuva, eu via os soldados vindo pois já haviam me visto ali. Passaram por Richard como flechas. Os que tinham cavalos, desciam deles. Escalavam a estrutura ao meu encalce. Quando alcancei uma das cabines do brinquedo, no topo, quebrei sua janela com as mãos - o vermelho tingiu meus dedos - e adentrei-a. Me debrucei de dentro da pequena cabine, e apontei a mesa de controle enferrujada para Richard. A alavanca estava lá. Eu berrei a ele que ligasse-a, antes que os homens me alcançassem.

Vi os homens caindo, escorregando, quando a estrutura passou a se mover. Pendurados, agora eles caíam. Arrebentavam-se contra o chão. A roda, acesa e viva, girava lenta. Não restara mais soldados vivos. Aliviado, sentei-me no banco imundo da cabine e fiquei a contemplar a chuva, sobre o parque que eu não veria mais, não tão breve. Gale, que não estava comigo no momento em que fui encontrado, teria de nos encontrar mais tarde. Eu partiria com Richard para a cidade de Divella, por segurança. Suspirei, preocupado e cabisbaixo conforme a cabine descia. Eu seria caçado, pelo meu real crime.

E era noite, quando pendiam aquelas estrelas de ouro às quais eu seria capaz de alcançar, oh eu seria, se roubasse um Ving! E atravessando as ruas forradas por tapetes azul-turquesa , estavam eu e uma figura mais alta ao meu lado. E àquela noite, eu e Richard éramos dois encapuzados de cabeças baixas, cujas silhuetas negras criavam o contraste com as luzes que compunham a galáxia da avenida central. O comércio a aflorar feito uma primavera de mil cores, eu via dos dois lados daquela larga avenida. E ao término da tapeçaria, estava o tal Teatro Lampiro, das luzes chamativas de um letreiro vintage, de fundo branco e letras negras, anunciando um grupo de dança vindo de Nebista. Sim, eu tinha um plano. Diante da bilheteria na qual uma fila se dissolvia conforme adentravam os portões, eu pude contemplar aquela construção em losango que era o tal teatro. De paredes forradas de um vermelho camurça, e com sancas de gesso à cada divisão entre um andar e outro . E as janelas largas cujas cortinas impediam de espiar o glamouroso interior. Abracei ao meu corpo e fui até a bilheteria. Lancei alguns trocados roubados sobre o balcão da pequena cabine e recolhi os dois ingressos. Entreguei um ao Richard e segui para a entrada. Um hall e corredores antecediam a sala onde seria apresentada a peça. Na distração dos funcionários, me perdi naquele labirinto, guiando Richard. Quando atravessada uma porta de duas folhas, encontrei-o: o grandioso Ving da companhia de dança, em repouso numa área à céu aberto nos fundos do teatro, cercada de altos muros de tijolos amarelos. E vieram então os guardas. E veio à minha mão, meu punhal. Para o confronto.

Ergui meu punhal. A manga deslizou um pouco. O meu pulso à mostra. Desviei do homem que veio até mim e desferi-lhe um corte nas costas, conforme avançava e deixava-o para trás. Um outro sacava sua pistola de cano dourado e se aprontava para balear Richard. Os que estavam a se aproximar, numa aglomeração, preparavam suas pistolas. Malditos! Pensava eu, temendo o poder de fogo daquelas sofisticadas armas. Uma figura se uniu a nós, e de relance eu poderia julgar que seria um outro guarda. A luminosidade do local era pouca. Lampiões pendurados às altas paredes dos muros, de baixa luminosidade. Eu, misto à escuridão, me movia como que em uma dança na companhia dos guardas aos quais eu feria não tão gravemente. Aquele era o palco onde eu me apresentaria, do lado de fora do teatro, reunindo todos os dias de treino que tive com Richard. Espiei pelo ombro a situação da figura misteriosa, e vi dois guardas indo ao seu encontro, erguendo suas pistolas de forma desesperada, tentando encontrar o gatilho eu diria. Recebi uma joelhada no estômago e recuei, inclinando o corpo para frente e dobrando os joelhos, numa reação à dor. Segurei firme o punhal e o desferi no estômago do infeliz. Prossegui na dança.

De relance, vi um pedaço da lona de balão que repousava sobre o convés do Ving. Imaginei eu, que não se tratava de um Ving comum. Que era isso agora? Um Ving com uma lona de balão levaria mais tempo a partir, que um comum! Mas não muito pude me distrair com tais indagações, pois conforme vinham os guardas eu os feria, sempre avançando em direção à ponte estendida do convés ao chão. Vi algumas figuras a espiar a situação, no convés. E os vi desaparecer também, apressados para algo. Mais alguns giros naquela dança louca da batalha, e pude notar que a lona de balão inflava. A tal companhia, era apoiada por piratas do ar... Um homem me puxou pelo capuz e meu rosto ficou à mostra. Mas que diferença faria tal coisa? Me virei e, conforme feria o homem, escutei aquela voz alarmando a preocupação para com os guardas... Ora, o desconhecido tinha alguma compaixão em batalha? Disparos recheavam o ar. Que sorte era a minha, não estar morto ainda! Em um desvencilhar da batalha, corri para até a ponte e me aprontei para enfrentar os piratas do ar que já nos aguardavam ao convés.

Vi alguns caírem. Fui atingido na perna por um guarda distante. Ameacei cambalear, mas suportei a dor, me movendo não com a maestria de antes, mas com a mesma cautela. Cortei a garganta do primeiro tolo pirata que me veio tentar tirar a vida. A tal lona continuava a inflar, e tomar a forma de charuto, como que aqueles dos dirigíveis. E sob essa tal forma, vi alguns piratas hesitando diante de tal confronto. Eu ainda tinha o punhal e o sangue de outros respingado no meu rosto magro. Fui até um dos homens e envolvi o pescoço dele com o meu braço. Aproximei minha arma ao pescoço dele.

- Que repensem os seus próximos atos! Tais atos que não levarão a nada, a não ser a morte de cada um de vocês... - Dizia eu, gesticulando com o punhal, como uma régua nas mãos de um professor, e aproximando-o novamente do pescoço do homem. Olhava-os um por um, com o verde dos meus olhos tomados por um brilho ameaçador. - Somos tão criminosos quanto vocês. Se prezam a liberdade, coloquem esse tal barco voador nos ares, agora!

E então eu viria, os homens roliços se entreolhando, com a raiva e a dúvida pairando no ar. Mas tais homens não eram burros, e se aprontaram para partir, berrando ordens e logo recolhendo a ponte para levantar voo. Eu não larguei o meu refém, por precaução.