☄ Divella

Me afastei da sacada, para dentro do quarto. Sob a luz das poucas velas, eu era um garoto ensanguentado que parou diante da amiga, e como eu explicaria? Fiquei olhando-a, de olhos bem abertos mas de lábios serrados em um silêncio perturbador. Limpei as mãos no sobretudo preto, manchando-o com um tom de vinho. Faltavam-me as palavras, mas a mentira veio-me saliente, na ponta da língua, como soprada por alguém que eu sabia, não pertencia a mim.

- Que não se assuste. Apenas me machuquei...

Um tom forjado de naturalidade misto com um desespero. Eu teria me ferido em um pesadelo? Que teria me acontecido?

- O parque... O tal espetáculo, acontecerá!

Pouco mais pude dizer. Saí para as ruas, sempre certificando-me da companhia de Anne. Ruas vazias, de cores um pouco apagadas, com a mínima luz de lampiões pendurados nas portas das casas, acesos, queimando. Minha voz rouca não se ouvia enquanto rumávamos ao parque. Eram ruas que faziam curvas constantes, forradas por tapetes que mudavam de cor conforme mudávamos de rua. Ruas desertas, de uma cidade quieta, zelando sonhos durante o sono. Mas nenhum vermelho daquelas cores seria igual o impregnado no meu rosto, ou nas minhas mãos que eu enfiara nos bolsos, para escondê-las. Como um paranoico diante da melhor amiga, eu agia. Paranoia por algo que eu havia feito mas não me recordava! As casas diminuíam, uma estrada se estendia como um tapete de boas vindas para até os portões altos do circo. Não seriam mais que cinco minutos de caminhada. Meu colar pesava, aquele pingente de ouro em forma de lua minguante torta. Minhas pernas doíam, e mais de uma vez ameaçaram me derrubar ao meio de tropeços. Diante dos portões, eu parei. Agarrei-me à grade, espiando as luzes do parque que há tanto estivera abandonado. Vi os portões se abrindo e um vulto espiando por detrás de uma barraca listrada. Ele sumiu quando fui olhar atentamente. À nossa frente, barracas listradas das mais chamativas cores, entre elas sempre o vermelho, com suas placas piscando e chamando-nos para a farsa de algum jogo impossível. Mas eu via, não havia mais funcionários do parque nelas. A roda gigante mais adiante, uma montanha russa tomando boa parte do parque, uma torre onde eu via bancos vazios subindo e despencando, velozes, para até os pés do brinquedo, tantas coisas me atiçando...

Quando propagou-se o grito de Anne no silêncio, eu subitamente virei-me à ela, com olhos que não eram meus e um meio sorriso. E eu sentia o coração afundando na inércia, quando minhas palavras simplesmente vinham em um tom zombeteiro que não poderia ser meu.

- De que tem medo, Anne? Que te acontece se ficar sozinha? - E me aproximei, em um passo longo para até centímetros de distância dela. Ela poderia ver a si mesma refletida nos meus olhos verde-trêmulos. Minha expressão tingiu-se de uma seriedade repentina. Fui ao ouvido dela e cochichei. - Descubramos.

Afastei-me em um salto para trás. Um entusiasta! E corri para um rumo que eu sabia, eu conhecia! Mas quem era eu, agora? Correndo sobre as ilustrações do chão do parque. Um barco viking balançava abandonado. O carrossel girava, com cavalos cujos rostos tinham sorrisos macabros, pichados por um vândalo. Um brinquedo onde xícaras giravam sem parar, eu as vi girar como os meus pensamentos desfigurados! E achava graça em tudo, rindo e olhando para trás, por cima do ombro. Queria ver Anne me alcançar! Fogos de repente explodiam nos céus, eram como o desabrochar das flores na primavera, mas mais brilhantes! Vinham do circo, no extremo do parque. Eu o via, eu corria para ele. Eu via suas cores listradas, branco e vermelho. A bandeira tremulando ao seu topo. Aqueles carros e vagões da trupe do circo rodeando-o. Um carrinho de pipoca tombado no chão. Eu fui engolido pelo circo, quando adentrei-o.

Eu levantei. Não era eu, com aquele sorriso de escárnio. Eu tinha um punhal em mãos. Me sentia tão imundo, tão desprezível! E sorria para aquilo, quando erguia a cabela para Anne e me aproximava a passos lentos, empunhando um punhal que Juan me dera. Meu colar, como era lindo! Que seria de mim, sem aquele colar? Meu olhar alterado, o sangue do meu rosto, minhas mãos trêmulas... E na minha mente, risadas e aplausos imaginários.

As palavras de Juan nada mais eram que sussurros distantes, e o seu tom era engraçado, fazia-me rir sem parar! Investi um golpe do punhal contra Anne. A verdade seria só minha, ela não merecia méritos!

O meu colar, ela agarrou-o! Eu tentei fincar o punhal no seu braço quando ela o fez, mas devo ter feito mero corte. Fui ao chão com ela, o colar ainda no meu pescoço. Caí ao seu lado e rolei, para me afastar e me levantar. Eu sorria, olhando-a. Eu via Anne, e eu dava pequenos saltos para até ela, no chão. Eu iria arrancar-lhe o coração com o meu punhal! E faria dele, enfim meu. Doentio! Juan ria, com um ar de enigma, assistindo à cena. Estávamos banhados pela luz dos holofotes. A lâmina do punham reluzia, assim como a bela lua do colar. Mas eu hesitava perante à garota. Eu tinha o punhal erguido nas duas mãos, e ria baixinho. Mas era uma risada desesperada, com um misto de dor! Que era que se passava por minha mente?

Larguei o punhal, ofegando. Ele caiu perto de Anne, sem som, pois a areia abafara. Eu suava frio, e as coisas já não eram mais engraçadas. Os sons não me eram mais delirantes, nem as cores. Meus olhos verdes retomavam a postura melancólica do olhar de quem sofre. Ajoelhei-me perto de Anne, admirando-a em silêncio, por uns breves segundos. É incabível à loucura, romper um laço tão forte de amizade. Eu conseguira controlar a loucura que me fora implantada. O colar não me afetaria mais... Arranquei-o e deixei que a areia o comesse. Abaixei meu olhar. Meu silêncio era o pedido de piedade à minha amiga.

E para onde iríamos? Não havia mais rumo a tomar, não havia mais o que pensar. Juan nos provara o quão éramos despreparados para encontrar a verdade sobre o mundo. Levantei, mas evitava olhá-la nos olhos. Que vergonha era eu... Um assassino, mesmo que não lembrasse. Eu havia matado um inocente...

- Anne. Que me perdoe... Não era meu desejo, te envolver nessa tal busca... E esses problemas... - Eu fiz uma pausa. - Como pude eu, querer matar a pessoa que eu... Amo...

E parei. Não poderia continuar, ela teria entendido. E se fosse o desejo dela, poderia me condenar, me xingar, eu era um garoto tão entorpecido àquele momento, que pouco me importaria.

- É livre, Anne... Daquelas pessoas que cruzam os mares sem rumo ao certo. Que eu estou fazendo? Te prendendo a mim em uma busca estúpida e perigosa. Não quero que seja assim... Você é livre.